Em 2012

JÁ DISPONÍVEL: "As Reconstruções de Tômaz". (http://asreconstrucoesdetomaz.blogspot.com/ ). Mais uma ficção literária com a marca do escritor rio-clarense Geraldo J. Costa Jr.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

“Pode se enganar a vida por muito tempo, mas ela acaba sempre por fazer de nós aquilo para o que somos feitos...”. – André Malraux (A Condição Humana).
1.
O que poderíamos fazer de melhor que não fosse passar o dia todo encostado no muro da velha fábrica desativada. Ouvindo o canto às vezes irritante, e às vezes poético, das gralhas que pousavam na praia não muito distante dali.
Esperamos inutilmente pelos turistas que não vieram naquele verão, como nossas mães, cheias de esperança e boa vontade nos havia prometido.
Em um mês voltaríamos para a escola. Para quê? Era pergunta que todos nos fazíamos.
Dois anos que a madeireira havia fechado. Três que o velho Emilio fizera a barba de seu último freguês. Quatro que os caminhões não chegavam buzinando na mercearia do Thomas. E cinco, que os homens sobreviventes de Rio Claro viram um traseiro bonito.
Éramos seis. Mas não éramos personagens de romance. Não como muitas vezes gostaríamos de ser. Éramos de carne e osso. Muito mais osso, sem dúvida.
Aquele era um mês de chuva. Fred sugeriu que – como nossos antepassados – fossemos pescar sardinhas em alto-mar.
E o barco? Onde arrumamos? – não me lembro até hoje quem teve a infeliz ideia.
Vamos eleger um novo prefeito no final do ano, e então, tudo vai melhorar.
Um ano atrás, e cheios de entusiasmo aguardávamos a chegada do novo padre.
E resolveu o quê?
Pois é.
Mas acontece que padres não são como os índios que fazem chover.
E quem disse que os índios fazem chover?
Os livros.
Ótimo. Num deles está escrito que onde dois ou mais estiverem reunidos em meu nome eu lá estarei.
Devemos então rezar.
Fazemos isso todos os dias.
A culpa é do padre. Ele não pede por nós como deveria.
Como assim?
O pastor pede com mais entusiasmo.
Grande coisa isso. Continua chovendo, faltando emprego e comida do mesmo jeito. E já faz muitos anos.
Padre Firmino cruza a auto-estrada com seu carrão todos os dias para almoçar no Provenzanno.
E pastor Isaías celebra os cultos sempre com um terno diferente.
E sapatos também.
E de cromo alemão.
Se nós vivemos nessa merda é porque não merecemos coisa melhor. Tudo é merecimento. Se você planta coisas boas vai colher coisas boas. E assim se dá com as más.
Quem disse?
O livro.
Aquele?
E qual outro?
Ora, então vamos comer livros. Rico em vitamina A.
Como assim?
A de ácaros.
A chuva apertou. Mas não arredamos o pé.
Longe, avistamos um cortejo vindo em nossa direção. Quando passou por nós, tomou a Rua do Porto, mas antes, bem antes era o seu destino. Lá, os portões já estavam abertos, as terras removidas, e o buraco feito, para receber a sete palmos de suas entranhas o caixão de carvalho onde seria consumida pelos vermes e graças a Deus toda a maldade daquele esquecido e medíocre lugarejo.
Morreu fedendo, segundo dizem.
Todos morrem fedendo.
E todos nascem chorando.
Sim.
É a vida.
E é bom que não seja de outra forma. No fim das contas, ela iguala a todos.
Devemos ir até lá.
Pra quê?
Pra se despedir do “Coisa”.
Daquela peste? Vá você.
Sim. Acho que é o que vou fazer. Certa feita, meu pai estava desempregado, e ele pagou o aluguel para nós.
Ele era o Juiz.
Mas pagou.
Daquela vez. E das outras? Você não conta? As vezes que ele mandou despejar nossas famílias?
Estávamos atrasados com os aluguéis.
Você diz nossos pais?
Dá no mesmo.
Engana-se. Eu ia vender amendoins, e aquele boçal, que anos chamei de pai, ia para o bar. E a cada final de tarde, ele voltava disposto a surrar a mim, meus irmãos e minha mãe.
Mas era o seu pai. Se ele bebia, era porque tinha motivos. Um desgosto profundo, talvez, com o qual não soubesse conviver.
O desgosto da vida dele foi ter engravidado minha mãe, quando ela tinha 16 e ele 19 anos.
Justifica.
Porra nenhuma!  O que foi que eu fiz pra ele me odiar tanto? Não pedi pra nascer!
Você se engana. Todos pedem pra nascer.
Ah, você andou bebendo também?
Andei lendo.
Sempre os livros, não?
São melhores que as bebidas, eu garanto.
Prefiro música. Som! Entendeu? Da pesada! Aquela coisa que entra pelo estomago, se espalha pelo peito e sobe pra cabeça. Aquela coisa... Delirante! Como é que eu vou explicar? Ora, eu sei lá!
Como o quê?
Andei fuçando na lan house, dia desses. Aquele site maluco que passa os filminhos.
Sei.
Como chama aquela merda?
Tubo.
Pois é.
E daí?
Meu! Fucei umas bandas, que já não existem. Cada som, rapaz! Você não acredita! Os caras tocavam aquelas músicas, e era algo diferente. Tudo fazia sentido! É como se no palco, eles se transformassem e transformassem tudo à sua volta... Porra, eles faziam o caralho do som! Algo legal de se ouvir. Baixão, guitarra, batéra, teclado e vocal. E tudo escuro. Então, havia momentos em que a platéia parecia entorpecida, viajando em delírios, mas, de repente, algumas luzes... Azuis, verdes... Luzes que se projetavam de cima a baixo, cruzando os ares em rodopios. Fumaça. Luzes... Som. Era algo muito louco. Bom demais.
Cara você anda metido na maldita pedra, não anda?
Não!
Como não? Farinha, e de péssima qualidade, é isso?
Vê se não enche! Caralho! Eu preciso arrumar dois reais pra ficar mais duas horas na maldita lan house. E ver e ouvir tudo aquilo de novo.
Vá tocar guitarra, seu desgraçado, vá escrever suas músicas. E se você disser que vai convidar a Taís pra dar uma volta sou capaz de vender o meu tênis e lhe arrumar dez reais pra um cineminha.
Você não entendeu né? Não, você não entendeu porra nenhuma! Escute aqui: Alguma coisa está acontecendo! Algo está mudando! E está acontecendo sem que ninguém perceba. E quando isto se der, talvez seja tarde.
Todos olharam para Fred, como se o levassem a sério. Mas não por muito tempo.
Eram 6 horas quando chegamos à praia. Havia chovido. E os últimos raios de sol daquele dia davam adeus.
Deixei que meus amigos seguissem em frente, e fiquei olhando para a imensidão do mar. Quando criança, eu sonhava que aquela imensidão me levaria a um destino glorioso. Aos 16, eu só queria ser tragado em espírito por aquela imensidão. Para que as aves de rapina, pela manhã, se saciassem de meu corpo. Nada mais.
Os amigos seguiram caminhando. Longe. Ora correndo, rompendo as ondas, com chutes e murros, rindo, cantando alguns, outros dizendo coisas que, das pedras onde me encontrava, na orla da praia, eu sequer podia entender. E a noite ia caindo. E os holofotes acendendo aos poucos.
Sensação comum naqueles dias, os meus amigos cada vez mais distantes de mim. Não sentiriam minha falta.















2.
Como se milhares de pessoas, em fila indiana, atravessassem o deserto sob o sol escaldante. Pobres, doentes, maltrapilhos, inúteis. Que morram todos! Soterrados pela tempestade de areia que se aproxima.
Eu pensava nisso, sentado à mesa da taberna, olhando para o copo de conhaque, quando soube que Fred teve a infeliz ideia de desenterrar o maldito Juiz.
E assim, naquela noite estrelada, num velho carrinho de carga há tempos esquecido na antiga tecelagem, e empurrado por todos nós, após subornarmos o guarda do cemitério e o da rua principal da cidade; o primeiro, com uma garrafa de vermute, e, o segundo, com um litro de vodca; levamos o já necrosado, fedorento e asqueroso e decomposto cadáver do maldito Juiz para celebrarmos o ritual da purificação, não dele, porque, evidentemente, há de permanecer no Inferno para todo sempre. Mas o nosso. Por nos livrarmos daquela repugnante besta humana que tanto sofrimento e humilhação impusera aos humildes habitantes daquele esquecido vilarejo.
Fred trouxera o álcool, e todos nós acendemos os fósforos. E, se bem me lembro, foram seis. O bastante para provocarem a combustão daquele entulho humano, rapidamente envolvido por violentas chamas.
Logo nos dispersamos por causa do cheiro insuportável.
Como sempre, fui para as pedras, de onde podia ver um aspecto da cidade adormecida e o mar atrás de mim.
Cruzei as pernas e, com as costas arqueadas, fumei dois ou três cigarros. Ao marulho interminável e envolvente das ondas, quis esvaziar a mente, tentando esquecer que, dali uma semana, eu faria 17 anos. E quase me convenci de que a causa da minha tristeza era que eu preferia o inverno ao verão. Preferia a chuva ao sol. E as nuvens, cinzas e densas, às estrelas. Preferia a solidão às pessoas. Eu era assim. Thomas do mercado também era. Cleide, a professora também. Assim como O Poeta, enquanto jovem. Tempo em que, cheio de esperança, todas as segundas-feiras, nosso baluarte das letras, cronista refinado, poeta por excelência, e romancista promissor; exalando o seu melhor perfume, tomava o ônibus com destino à capital, levando numa pasta de couro, debaixo do braço, um calhamaço de originais de um dos seis livros que já havia escrito. Não era ainda, aquele homem de 49 anos, talvez 50, que, maltrapilho e fedido, cabeça raspada e pés descalços, vez em quando era visto cambaleante pelas ruas da cidade em dias de chuva, ou sentado na escadaria de acesso à capela onde o padre Firmino, nas manhãs de domingo, rezava suas missas para meia dúzia de abnegados fiéis que, àquela casa de orações e na presença do ilustre homem de Deus, não iam à procura de um lenitivo para suas dores ou consolo para suas frustrações, mas imaginando, e eu diria convencidos, sim, a reduzir com aquela cínica e inútil penitência a extensa lista de pecados comuns e veniais que carregavam sobre os ombros de sua não menos pesada ignorância.
Amanhecia. Fred despediu-se de mim quando avistou o pai no portão a esperá-lo.
Seu merda, onde foi que você se meteu?
Um tapa, no pescoço. E depois outro, no rosto. Certeiro e forte. E finalmente, um chute nos fundilhos. Bom começo.
Eu devia matá-lo de pancada. Moleque irresponsável! O que acha que vai conseguir vadiando o dia inteiro na rua? Você que experimente chegar outra vez bêbado e nunca mais coloca os pés nesta casa.
Milton, os vizinhos vão escutar!
Era a mãe, e, como toda boa mãe, preocupada com as aparências.
Cala a boca você, mulher! Cala a boca, ou te parto ao meio, também!
Mais um capítulo do interminável dramalhão mexicano.
Veja a merda de filho que você tem! Passei os meus melhores dias, trabalhando 12 horas, pra sustentar o vagabundo que você criou.
Essa era a melhor parte. Os desaforos disparados com veemência, a revolta incontida.
Bosta de filho que você me deu. Esse merda, metido a besta. Bebe, fuma e trepa com puta e viado, a qualquer hora, em qualquer lugar. Mas pergunte se trabalha? Não! Estuda? Também não. Claro que não!
Outro tapa, agora na orelha, e igualmente certeiro. Fred já estava no chão, acuado, tentando inutilmente proteger a cabeça.
Não paga um caralho duma conta desta maldita casa. Pois vou lhe mostrar, seu bosta, o que é ser homem de verdade.
A mão pesada, peluda e firme rasgou o colarinho da camisa do meu amigo. Mais um pouco, e também lhe arrancariam as orelhas. Alguns fios de cabelo conseguiram arrancar, sem muito esforço.
Em nenhum momento Fred reagiu. Nem mesmo com palavras.









3.
E como é que terminou a coisa?
Mal.
Sobrou o quê do nosso amigo?
Pouca coisa.
Tá internado?
Sim.
Sai quando?
Não sei.
Você...?
Nem pensar. Como poderia? Você conhece o tamanho do homem. Aquelas mãos de gorila.
Mãos de carpinteiro. Italiano. E dos bons.
Pelo menos, já me livrei desses aborrecimentos.
Teu pai já morreu?
Sei lá. Pra mim nunca existiu.
Bocudo e metido como você, Adler, não vai faltar neguinho pra encher tua cara de porrada.
Vamos falar de literatura, tá legal?
Porra nenhuma. Vâmo fala do caralho do filme que tá passando no cinema. Monte de neguinho morrendo ladeira abaixo.
Bandido?
É.
Já vai tarde. Raça ruim tem que morrer mesmo.
Fica fazendo maldade pros outros, não é não?
Vocês piraram todos? Até parece que aqui todo mundo é santo!
Adler descobriu um antepassado seu que foi alemão. Fazia churrasco de judeu em campo de extermínio.
Verdade?
E Nico, bastante interessado, foi chegando mais perto.
Conta direito essa história.
Não sei. Minha mãe comentou qualquer coisa. A gente tava dia desses, limpando o porão, mexendo numas caixas, e havia uma papelada, umas fotos, enroladas num barbante.
Quem eram as pessoas das fotos?
Como é que eu sei?
Um pelo menos!
Bom. Esse aí do qual comentei chamava-se Otto. Acho que era esse o seu nome. Não lembro direito.
Mas sua mãe se lembra?
Não. Ela apenas ouviu falar.
Nico sabia colocar as perguntas.
Fardado? O cara da foto?
Sim.
Merda!
Era alemão mesmo!
Nazista?
Você será julgado por isso, Adler: Sonegar informações sobre um criminoso de guerra.
Que deve ter morrido já faz muito tempo.
Neste caso, assunto para o padre Firmino, que melhor do que ninguém dentre todos os que conhecemos sabe sobre céu e inferno.
Quem?!
Não. Minha proposta é que façamos um inquérito e o remetamos ao pastor Isaías.
É bom começar a juntar dinheiro Adler.
Qual dos três é mais dispendioso: o padre, o pastor ou o advogado da Rua 9?
Ah, difícil!
Absolvido por falta de provas.
Meu cliente, meritíssimo, irá requerer indenização por danos morais irreparáveis.
Que seja uma soma vultosa. Ah, e não esqueça: conversamos depois na salinha ao lado.
De repente, a garrafa de conhaque que estava sobre a mesa desapareceu vindo a explodir contra a parede ao lado.
Voaram cadeiras. E outras garrafas. Ao final de um minuto, corpos amontoados pelo chão, alguns cobertos de sangue. Buracos nas paredes e no mobiliário. Tiros. Não mais dentro do bar. Na rua.







4.
Não pensei que tão cedo me veria só no mundo. E o mundo era uma cidadezinha litorânea esquecida pelos empreendedores, pelos artistas, e receio, pela vida, cujas ruas do centro ostentavam velhos prédios em ruínas, portas fechadas, sujeira acumulada, gatos vadios, viciados, prostitutas, pombos nos beirais dos telhados, alguns no chão, mortos.  Caminhar pelas ruas do centro de Rio Claro era como atravessar a Campos Elíseos em Paris, antes da libertação.
Onde aprendi isto? Lendo.
Naquela tarde, eu estava no píer, sentado com as costas na madeira, entretendo-me com um livro. Era sábado. O velho Emilio passou a caminho da praia. Numa das mãos a vara de pescar. Na outra, uma sacola. Não cumprimentou. Há muito tempo já não conversava com ninguém. Seus fregueses haviam morrido quase todos. Os mais jovens, exceto eu, achavam ridículo freqüentar a barbearia de um velho de 76 anos, cujas mãos eram trêmulas e a visão ampliada por lentes de fundo de garrafa dos óculos que teimavam em escapar de seu rosto.
Minha barba não crescia. Penugens que eu mesmo tirava com uma pinça. De modo que, a navalha afiada do Sr. Emilio, nunca esteve sobre meu pescoço. Mas com ele eu cortava o cabelo desde os 3 anos de idade. Uma aparadinha, Sr. Emilio, por favor. Mas ele não se esquecia do corte escovinha que meu pai lhe recomendava todas as vezes que lá me deixava, enquanto saía pra tomar os seus aperitivos no armazém do Bola, distante cinqüenta metros daquela mesma rua.




5.
A minha maneira de ver a vida sempre foi a mais pessimista possível. Talvez seja isso. Talvez, nisso, tudo se explique.
Meus melhores amigos foram para a Universidade, e eu, fui desenhar caricaturas, imaginando que, com isso, poderia ganhar a vida.
É o que se imagina depois que se ganha um concurso em nível municipal, aos 12 anos.
Restaram-me os amigos medíocres, com os quais, celebro quase todos os dias, a minha frustração.
O padre disse na homilia que Deus sabe onde coloca as pessoas. Mas não disse por que as coloca. Somos reputados como ovelhas para o matadouro. Não consigo ver a vida de outra forma. Na pena dos poetas, a liberdade. Mas, no dia-a-dia, na mesa posta, no momento íntimo, na hora da morte, onde a liberdade?
Ontem, fui visitar Fred no hospital. Disseram os médicos, que demorará mais alguns dias até que tenha alta. O pai de Fred não foi preso. A mãe, não apresentou queixa, e ninguém ousou fazê-lo. Se o filho foi parar no hospital, onde não pararia o denunciante?
No hospital, eu vi um cara morrendo. Ele estava no quarto da frente. Mal. Muito mal. Já quase não respirava. Câncer de pulmão por causa do cigarro.  Estava entubado. Agonizava. Parecia um cachorro atropelado, abandonado no meio da rua, nas últimas. Médicos e enfermeiras haviam passado a noite toda tentando reanimá-lo. Inútil.
Como pode um ser humano suportar tudo aquilo? A família havia desistido dele. O cara bebia. Bebia muito. Era alcoólatra. Estivera internado antes no hospital psiquiátrico de onde viera transferido. Quem o acompanhava era sua cunhada. Uma senhora negra, simpática, e que gostava de falar, porém sentimental demais. Chorava a cada dois minutos. Dizia que se tratava de um bom sujeito o seu cunhado, mas, preso ao vício da bebida. Ele já sofria de cirrose hepática, quando descobrira o câncer no pulmão, em decorrência do cigarro. Pra família foi como a gota que transbordou o copo. Mas o que já não haviam aturado dele, antes? As pessoas têm os seus limites. Não se deve entregar a outro a cruz que nos pertence. Há coisas pelas quais temos que passar. Às vezes, sozinho.
Por que estou pensando isso?
Pronto. Era o que dizia o barbeiro Emilio quando terminava o serviço, pelos quais eu continuava lhe pagando dez reais.
Bom. Muito bom Sr. Emilio. Como sempre. Tenha um bom dia.
Na rua encontrei Nico saindo do armazém.
Aonde vai?
Pra casa.
Não. Vai tomar uma cerveja comigo.
Você pagando, nenhum inconveniente.
Mas você não se arrepende de gastar dez reais com esse velho idiota, não?
Não diga isso, Nico. Ele não é um velho idiota. É alguém que precisa trabalhar.
Mas é velho. E como todo velho, é idiota.
 Já você não precisará ficar velho pra se tornar um.
Ora, cale a boca, seu alemão arrepiado, ou lhe quebro os dentes.
Não seria mesmo mau ideia passar algumas horas na companhia de Fred.
Por quê?
Bem, no hospital, pelo menos, se faz três refeições.
E desde quando Fred está internado?
Há dois dias. E, provavelmente ele ficará pelo menos outros dois.
Por causa do pai?
Não. Por causa dele mesmo. O pai sempre foi aquela merda. Mas acontece que Fred já tem 19 anos e acha que a tal situação vai mudar. Mas não vai mudar... Você entende?
Acho que sim.
No bar do Tobias, eu e Nico conversamos outros assuntos, enquanto bebíamos cerveja e comíamos amendoim.
Alcoólatras começam assim. Uma cerveja hoje, duas amanhã. Depois o vinho, o conhaque, as misturadas, e o maldito uísque; primeiro na pedra, depois, como todo bom caubói.
Entende mesmo disso.
Estou cansado de ver, Nico. Sempre a mesma coisa.
Dizem que o Juiz também morreu por causa da bebida.
Não. Ele morreu porque era um sujeito ruim. Portanto, merecia morrer.
Durou muito.
É porque Deus sabe a medida exata do sofrimento de cada um.
Deus?
Sim.
Queria ser apresentado a ele.
Fale com o pastor.
Por que não o padre?
Não. Fale à sua consciência. Se Deus existe mesmo, está por toda parte, e, portanto, também aí, na sua mente.
Sim. E já passou da hora de tomarmos outra cerveja.
Peça também uma porção de fritas.
Aproveite. Não é sempre que tenho 20 reais no bolso.
























6.
Quem são os culpados? Os vitoriosos, quem são?
Por que está dizendo isto?
Porque está amanhecendo o dia, e estamos atravessando novamente esta rua molhada.
Choveu a noite toda.
Não reparei.
As lâmpadas dos postes ainda estão acesas.
Apagam-se às seis e meia.
Como sabe?
É assim todo o dia.
Você não dorme?
Quase nunca.
O que fica fazendo à noite?
Tentando entender. E outras vezes, aceitar.
O quê?
 Ora, a realidade.
Ou seja, por que tudo tem que ser assim?
É. Mais ou menos.
Chegamos à calçada. Nico me olhou esperando por alguma resposta.
Ainda desenha aquelas coisas malucas e divertidas?
Não.
Desde quando deixou de desenhar?
Já faz algum tempo. Meses, talvez... Não sei.
Por quê?
Não faz mais sentido. Não funciona mais.
Em frente à porta do prédio onde Nico morava, paramos, e, antes que ele subisse, disse-me ainda:
Você é doido. Sim, tenho certeza que é. Às vezes, penso que você vive com a mente noutro mundo, longe daqui. Passa tardes inteiras naquele píer, olhando para o mar. Observando as pessoas que por ali passam. Mas não lhes dirige a palavra. Sequer para cumprimentá-las.
Não são meus amigos. Não os conheço.
E por isso nada representam pra você?
Sim.
Você devia ter ido embora. Este maldito lugar é pequeno demais pra você.
Eu sempre tive esta certeza.
E por que ficou?
Eu tinha amigos.
É muito pouco.
Eu tinha algo mais.
Nico me olhou de maneira séria, o que não era habitual.
Eu tinha esperança – foi a minha resposta.
Mas se esqueceu de que não teria sempre 15 anos.
Tenho 19.
Mas não tem mais os mesmos sonhos de antes.
Eu os demiti.
Não. Eles o deixaram.
Nico havia fechado a porta, enquanto eu caminhava pela calçada já distante.
Meus olhos sempre estavam voltados para o chão. As mãos nos bolsos da calça. O polegar da mão direita para fora.
Quando cheguei a minha casa e, ao passar pela cozinha, vi a mesa arrumada como na noite anterior, lembrei que fazia exatamente um ano que eu estava desempregado.
Com 15 anos, eu adorava, pela manhã, admirar-me no espelho, antes de ir para a escola.
Mas, naqueles dias, eu fugia do espelho. Não tivesse ficado com aquela casa depois que meu pai falecera e minha mãe, cansada da mesmice da vida, fora procurar novos horizontes, certamente eu estaria morando na rua.
Naquele ano eu havia emagrecido 10 quilos.
Ganhava algum dinheiro trabalhando como frentista no posto de gasolina do Turco. Ou aos finais de semana, quando dobrava o movimento o bar do Tobias, o que me permitia ganhar um extra.
E enquanto o armazém de Thomas mantivera as portas abertas eu trabalhara como empacotador. Foi nessa época que conheci Taís, cujo pai, viera da capital, a trabalho. Fora a última cartada de Thomas para salvar da falência o seu maldito armazém.
Mas o meu patrão, e eu, tivemos o mesmo destino. Perdemos as únicas coisas realmente importantes que tínhamos na vida.
Um ano depois, Thomas fechou as portas de seu armazém. E eu fechei as de meu coração.
Eram 7 horas da manhã de uma sexta-feira, e, como nos filmes americanos, o asfalto da rua estava molhado. Denso nevoeiro caia sobre a cidade, o que fizera que a companhia elétrica mantivesse acesas as luzes dos postes de iluminação, mesmo depois da alvorada.
Taís estava na calçada em frente ao armazém. Vestia um casaquinho verde, saia preta e calçava botas. Mantinha os braços cruzados e o olhar perdido n’alguma direção, evitando olhar para mim, desde o momento em que nos cruzáramos naquela manhã.
Percebi que seus cabelos estavam úmidos, e o perfume vindo deles, quase me levou a tocá-los, porém me contive.
Ela esperava por seu pai, que, lá dentro do armazém, no escritório, terminava de acertar as contas com Thomas.
Eu não tirava os olhos de Taís, na vã esperança de que de repente ela deixasse sua raiva de lado.
Pensei perguntar se ficariam na cidade, ou se tinham planos de voltar para a capital. E quando havia me decidido a romper o silêncio, um carro estacionou atrás de nós.
Era a mãe de Taís. Chegou perguntando sobre o marido.
Está lá dentro, acertando as contas com o proprietário.
Seu pai é mesmo um idiota. Eu bem disse que não se aventurasse neste fim de mundo.
Mas ele é um homem movido a desafios, mamãe!
Gerenciar um armazém à beira da falência? Neste fim de mundo? Isto não é desafio, é estupidez, Taís.
E nesse momento, a elegante senhora, dirigiu-me a arrogância do seu olhar.
Olhe bem, Taís, do que foi que você se livrou.
Ou seja: um empacotador de armazém desempregado.
Taís fez menção de me olhar, mas evitou.
E quando acompanhada dos pais, ela partiu dentro daquele Wolkswagen, eu me senti aliviado.
Logo, o veículo se perdeu na distância. E, cabisbaixo, arrastando os pés no chão, eu voltei para casa, certo de que havia perdido a minha primeira oportunidade e, talvez, única, de ser feliz ao lado de uma mulher.  Nada mal pra começo de conversa.




















7.
Precisamos fazer alguma coisa. Nada acontece do lado de cá.
Estávamos sentados sobre a linha férrea, nossas pernas balançando ao sabor do vento. Cinco metros abaixo de nós, o canal, onde Chris morrera afogado quando tinha 14 anos.
Era o nosso local de encontro. Tudo o que fazíamos ali, ou seja, fumar, beber, mascar chiclete, se masturbar, ouvir música, tudo, enfim, dividíamos a satisfação com o Chris, como se ele ainda estivesse entre nós.
Naquele final de tarde, véspera de Natal, Adler lia para o Chris. Era um bom livro. Falava sobre a última batalha de um velho pescador para fisgar o mais cobiçado peixe dos mares cubanos.
Será que ao final ele consegue fisgar o peixe?
Claro! História de autores americanos sempre tem final feliz. É como nos filmes.
Não esta.
E todos me olharam naquele instante.
Eu já havia lido o livro. Estava lendo, alguns anos antes, quando Chris – o melhor, o mais talentoso dentre nós – inventou de apanhar uma bola que havia se precipitado no canal.
Lembro-me que vi meu amigo se debatendo na água, e, naquele momento, eu me lembrei do velho pescador, de sua persistência e tenacidade em não desistir; e se o velho Santiago, nada tinha senão a coragem e a companhia da imensidão do mar, Chris não estava a sós. Achei que pudesse salvá-lo. Acreditei nisto, como o velho pescador acreditou que fisgaria o peixe. Ele conseguiu, e eu também. O pescador voltou para a praia com o seu prêmio. E eu voltei para o lado de lá da linha, o lado em que as coisas aconteciam, carregando nos braços o meu amigo Chris. O ou sopro de vida do que restara dele. 
Talvez um jornal.
Adler fechou o livro, convencido da ideia, ventilada por Nico.
Por que um jornal?
Porque não temos um.
E escreveremos sobre o quê?
Sobre nós.
E dessa vez, não foi para mim que todos olharam.
E por que não? Ora, escreveremos sobre tudo.
O que é tudo pra você, Nico, numa cidade, perdida no fim do mundo, e onde nada de importante acontece?
Morreu o Juiz.
Faz três anos.
Os trens não passam mais por aqui.
O último passou há quase uma década.
Talvez porque não haja jornais.
Não há jornais porque não há quem anuncie.
E não há quem anuncie porque o comércio está falido.
O Sr. Emilio, o barbeiro!
As ideias de Nico, geralmente, primavam pelo cinismo.
O bar do Tobias! Sabia que ele é jornalista? Poderia ser o nosso editor.
Mas a ideia não prosperou. E o leilão teve seqüência.
Quem dá mais?
A lojinha da dona Margarida!
É dona Rosa, Adler!
Dá no mesmo.
Histórias. Esqueçam as notícias. Devemos publicar histórias.
Literatura?
Sim!
Contos, novelas e poesias?
Ensaios?
Exatamente.
E quem vai ler Adler? Você?
Leitor número um.
E único.
Não seja pessimista.
Podemos escrever o jornal, todos juntos, no bar do Tobias e sob a orientação dele.
E de preferência, à noite, e as mesas cobertas de garrafas.
De cerveja e conhaque.
Uísque.
Cinzeiros.
Sim! Como escritores que somos de fato. Somos gênios! Mal posso acreditar!
Não começamos a beber ainda, Nico.
A ideia do jornal, embora palpitante, não prosperou.
Então, pensamos em montar uma banda de rock. Mas nenhum de nós sabia tocar um instrumento sequer.
Talvez, um coral. Mas até as gralhas que sobrevoavam a praia, todas as manhãs, teriam melhor êxito.
O fato é que precisávamos dar um sentido às nossas vidas. Fazer algo mais do que sentar na linha férrea, todo final de tarde, e ler para o Cris, e beber e fumar com o Cris, e pensar no Cris, como ele seria aos 19 anos, a minha idade. As mesmas sardas ainda estariam em seu rosto? O cabelo vermelho, desgrenhado? A calça jeans remendada, a mesma camiseta branca, o velho tênis All Star, o boné de sempre?
Quando éramos crianças, nos sentíamos constrangidos em morar do lado de cá da linha. Afinal, tudo era mais bonito do lado de lá. Até para se suicidar debaixo das rodas do trem, as pessoas escolhiam o lado de lá. O armazém do Thomas, a loja de departamentos, o restaurante, o cinema, tudo ficava do lado de lá. Do lado de cá, as ruas sem asfalto, as casas populares, onde moravam operários da tecelagem e outras famílias, igualmente menos abastadas, dentre as quais, a minha.
A loja de discos, ia me esquecendo, durou pouco. Iniciou as atividades dois meses antes de a tecelagem fechar. Fechou depois. Logo em seguida.
Vou chupar manga. O cão chupando manga. Ótimo.
E depois, ora, o que vem depois? Esta era a pergunta que atormentava a todos naquela cidade havia muito tempo.









8.
Eu devia pegá-la pelos cabelos e a arrastá-la para o quarto. Atirado-a sobre a cama e caído sobre ela. E esbofeteá-la. Vagabunda! – eu devia ter dito – Eu sou o teu homem!
E por que não o fez?
Tobias desviou os olhos de mim para a direção da porta do bar, e ali se perdeu em algum pensamento que muito parecia incomodá-lo.
Eu me desesperei. Nunca pude imaginar que aquilo pudesse acontecer comigo.
Fidelidade é circunstância, Tobias, não é virtude.
Sim. Só agora percebo isso.
Você a matou?
Não. Mas desejei. Eu a mataria, e depois, a mim mesmo.
Ainda bem que desistiu da ideia. Onde eu iria tomar os meus tragos e aprender como se faz um jornal?
Esqueça isso.
Difícil seria convencê-lo. Tobias demonstrava abominar a ideia. Mas eu estava convencido dela.
Não era normal que alguém chegasse ao bar às seis da manhã pra tomar uma cerveja bem gelada. A menos que ele se chamasse Nico.
Estou vindo do hospital. Fred teve alta. Disse que passa por aqui, depois.
Ótimo! Anime-se Tobias, o seu melhor freguês está a campo novamente.
Espero que ele se lembre de pagar o que me deve.
Quanto ele lhe deve?
Cem.
Ora, não é muito.
Da semana passada é cem. E o de antes, preciso ver na caderneta.
Engoli seco.
Escute Tobias, nosso amigo Fred está em dificuldades. Faremos uma caixinha, nós, seus amigos, e daremos um jeito de acertar isso sem que ele saiba. Porque não queremos perder a companhia dele e nem que você, nosso melhor anfitrião fique no prejuízo. Está bem?
Sim, alemão. E espero que seja logo.
Ora, Tobias, pare de falar besteira e nos sirva um conhaque, por favor.
Enquanto Tobias buscava na adega uma garrafa do melhor conhaque, Nico e eu nos acomodamos à mesa.
Ele me falava sobre a ex-mulher quando você chegou.
Então é verdade o que dizem?
Finalmente ele se sentiu à vontade pra falar sobre o assunto.
 E como foi?
Terrível.
Nossa! Então é verdade o que dizem?
Sim. Ela o traiu com um sujeito bem mais novo. Um operário da construção civil, oriundo da região centro-oeste do país. Caolho, manco e analfabeto.
Jesus Cristo!
E faz tempo?
Mais ou menos. Tobias veio na leva de passageiros do último trem.
De onde veio?
Da capital.
Tobias nos serviu. E esperamo-lo se afastar para prosseguirmos a conversa.
Ele é jornalista, você sabia?
O quê?!
Caralho, quantas vezes eu já disse, e ninguém me acreditou!
Puxa!
Por isso fala e escreve bem. E sua conversa é sempre agradável.
A prova de que é possível reconstruir a vida. Fosse eu no lugar dele, teria matado a desgraçada.
Ele pensou em fazê-lo?
Mas não o fez. O que prova também que é um bom homem.
Bons homens também matam.
Em nome da honra?
Sim.
Mas alguns, como seu pai, morrem de desgosto.
Ora, porque o maldito teve que desenterrar o defunto. O sangue me subiu á cabeça como sempre acontecia naquelas ocasiões. E de repente me esqueci que estava diante de um amigo.
Cale a boca, Nico! – e esmurrei a mesa.
Afastei-me da mesa, deixando o copo de lado.
Não admito que fale sobre isso. Não admito que ninguém fale sobre isso, você já devia saber.
Deixei meu amigo na mesa, e fui até porta do bar, remoendo-me de ódio por me lembrar daqueles dias.
Rio Claro, ainda estava envolvida pelo denso nevoeiro da manhã. Em meio a este, vindo pela calçada, o nosso ilustre Poeta. Vestia um casaco surrado, uma calça larga demais para a sua cintura. Debaixo do casaco verde, um suéter cinza. Seus cabelos haviam crescido um pouco, mas assim que passasse o inverno, ficariam no chão da barbearia do Sr. Emilio que, por caridade, o atendia, a cada dois ou três meses.
O Poeta trazia um caderno de brochura debaixo do braço; era velho o caderno, quase sem capa; no meio, algumas folhas soltas; no canto da boca, o Poeta tinha um toco de lápis com o qual escrevia.
Meus amigos e eu tínhamos desistido de lhe dar canetas, porque simplesmente, ele não as usava. Preferia o lápis.
Às vezes, no píer, eu ficava a observá-lo, à distância, apontando o lápis com uma lâmina de barbear. Era um ritual. Ocasiões havia em que, ao invés de um, ele trazia consigo meia dúzia de lápis. Sem que eu entendesse por que tantos assim, se ele escrevia tão pouco. Algumas palavras, durante alguns minutos. Depois, abandonava o caderno e os lápis, e deixava seu olhar se perder indefinidamente na direção do mar.
Naquela manhã, entretanto, vindo pela calçada, ao passar por mim, ele me cumprimentou, pela primeira vez em anos.
Pensei segui-lo, ainda que à distância. Descobrir onde morava. Arriscar uma conversa. Porém, me detive, porque, por alguma razão vislumbrei a ideia de que se conhecesse o passado daquele homem, talvez encontrasse o meu futuro.
Mas ele devia ter quarenta anos, ou mais. E eu, 21. Eu tinha ainda muito tempo. E como diz a música, todo o tempo do mundo. É o que se pensa quando se têm 21 anos.
Certamente não era o que pensava minha mãe.
Quatorze de julho era o seu aniversário. Eu jamais me lembraria disso. Mas, naquele dia, ela fez questão de me lembrar, indo visitar-me.
Não recebo flores?
Um abraço. Talvez.
Por que não um beijo?
A gente beija quem a gente ama.
Acho que nem o seu pai você o ama mais. Passei no cemitério, antes de vir para cá, e o túmulo dele está sujo e deteriorado.
Como todos os outros daquele maldito cemitério.
Até o túmulo do Juiz se encontra num estado lamentável. Uma heresia. Está aberto. Havia um indigente lá dentro, escondendo-se do frio.
E da chuva.
Um homem horroroso. De cabeça raspada. Grande, porém, magro. Barba por fazer. Olhos miúdos, cansados e tristes. Metido num casaco verde, ensebado. Um suéter rasgado, por debaixo. Você não acredita, ele estava descalço. Neste frio!
É o Poeta.
Quem?
Um velho conhecido. Não sabemos o seu nome. Por isso o chamamos assim.
Ele não tem cara de quem aprecie uma boa amizade e menos ainda uma conversa agradável.
Ele não fala. Não fala com ninguém. Ou melhor, ele não usa as palavras para falar. Ele fala com os olhos. E escreve.
Ele é um imbecil, isto sim. Viver desse jeito, feito um bicho do mato. Um atrasado inútil, como tanto outros que há por aí.
Como seu filho, você quer dizer?
Meu filho não é atrasado, tão pouco um inútil. Ele é revoltado, isto sim. Porque ainda não entendeu de que a vida é feita de escolhas.
Abandonar um lar. Um marido bom, um filho pequeno, por causa de uma aventura amorosa com um rapaz vinte anos mais novo. Isto é fazer escolha?
No meu caso, foi sim.
Não. Chamo a isto de destruir vidas. Porque foi exatamente o que você fez.
Você tem 21 anos, filho. Devia se interessar por algo que preste, estudar, e reconstruir sua vida.
É difícil pra gente caminhar quando nos falta chão.
Mas já passou tanto tempo.
Pra você. Pra mim, aquilo se repete todos os dias. A mesma cena. Uma manhã, como esta, papai na cozinha, esperando você chegar. E então você chega, depois de passar a noite toda fora de casa, outra vez. E eu, vou para o quintal. E se meus olhos não vêem, os meus ouvidos ouvem, o meu coração sente. Dispara... Eu tenho 11 anos.  E logo, não terei mais a companhia do meu pai.
Você tem sua mãe.
Tenho? Onde você esteve esses anos todos, mamãe? Eu a procurei pelos cômodos desta casa. E até nas ruas. E nos lugares onde imaginei você pudesse estar.
Moro com sua tia, minha irmã, cujo endereço, você conhece muito bem.
Mas quando saiu desta casa, foi morar com outro homem que não era o meu pai e numa espelunca sabe-se onde.
Isso já faz muito tempo.
Há mágoas que o tempo não dissipa. Elas são resistentes. Não podem ser arrancadas.
Dona Áurea percorreu os olhos pela sala; caminhou até a porta, e depois de olhar um pouco na direção da rua, voltou-se para mim.
Vim convidá-lo para morar comigo. Sua tia me convenceu a fazê-lo. Venda esta casa. Guarde o dinheiro pra você. Venha comigo. Arrume um trabalho, volte a estudar. Se vista e se porte como gente. Você é bonito. Tem capacidade para ser o quiser nesta vida. Você é meu filho. E esta é a razão para eu acreditar nisto.
Sequer fiz menção de responder. Nem mesmo dirigi-lhe o olhar.
Ela já ia saindo, decidida, mas eu ainda não dera a conversa por terminada.
E por que a gente não faz diferente? Você volta a cuidar da roseira da casa, a fazer comida naquele velho fogão, e a dormir naquela cama barulhenta. A usar vestido, saia, e o cabelo curto. O que me diz?
Jamais.
Pois é exatamente por isso. Jamais será como antes.
Seu pai não está mais aqui.
E mesmo que estivesse ele teria a mesma opinião que eu.
Não suporto mais a sua ausência, filho!
Devia ter pensado isso antes.
Está passando o tempo! E passa muito rápido. Você já tem 21 anos!
E depois 22 e 23... E sabe-se lá Deus, quanto mais. Embora eu sinceramente ache que não serão muitos. E vou lhe dizer uma coisa: Não será mesmo, se depender de mim.
Não diga isso!
O que devo dizer então? Que a vida com ou sem você será a mesma, sempre?
Talvez a vida mude.
A sua mudou, não foi? A minha também. Veja.
Estendi os braços ao lado do corpo, e rodopiei duas vezes, sem sair do lugar.
Cuido de mim muito bem, mãe. Lavo e passo; faço comida. E limpo esta casa quando tenho vontade. Trabalho, sim, embora, alguns, achem que não. Namorada, não tenho. Apenas alguns amigos. E às vezes me sinto feliz. Geralmente quando estou só e embriagado.
Isto é conformismo. Discurso de derrotado. Não combina com você.
Aquele garoto, que passava horas, trancado no quarto, estudando, Dona Áurea, fique sabendo, não existe mais.
Mas continua sendo meu filho.
Azar o seu.





















9.
Às sete da manhã, o sol atingia em cheio o pátio abandonado da antiga estação de trens, dissipando aos poucos o denso nevoeiro.
Um funcionário da prefeitura varria o local que os pombos e o vento teimavam em sujar.
Muitos anos antes, numa hora aproximada, meu pai estacionara a composição de cinco vagões de passageiros vinda da capital.
Ele fora o último a conduzi-la e também o último a deixá-la. Esperei que os passageiros desocupassem a plataforma e corri para os seus braços.
O costumeiro sorriso de meu pai, de repente, cedera lugar a um contido choro.
Ele tentou. Sim, ele o fez. Um ou dois anos tentou trabalhar na empresa de ônibus que explorava o transporte coletivo de Rio Claro. Não era a mesma coisa. Chegava em casa sempre com a cara amarrada, calado, e não se entusiasmava nenhum pouco quando minha mãe lhe assegurava que logo se acostumaria com o novo emprego.
Jamais se acostumou. E do emprego para o bar do Tobias foi questão de tempo.









10
Era sábado. Dia em que todos nós tínhamos uma missão a cumprir.
Não importasse o filme, o mais velho, deteriorado e conhecido, lá estaríamos. E tudo porque, a Sra. Miriam, a proprietária, vivia ameaçando vender o cinema para que o pastor Isaías ampliasse o seu negócio. Propostas não lhe faltavam. Algumas tentadoras.
Mas a chuva e depois o frio daquela noite, foram o pretexto para segurar meus amigos em suas casas. Até por volta de 10 e meia, quando então, todos se encontrariam para um trago no bar do Tobias, inclusive eu.
A cena era aquela em que Marlon Brando passa manteiga no traseiro de Maria Schneider.
Meia dúzia de assistentes numa sala enorme e escura, enquanto na outra calçada, num acanhado prédio, bem defronte ao cinema, centenas de fiéis e, talvez, milhares de espíritos sofredores e ignorantes, participavam de mais um culto evangélico ministrado por ele, o terrível para os outros e, adorado para os seus, o pastor Isaías.
Maria, a depravada Maria, estava preste a dar o seu primeiro gemido quando a projeção foi interrompida, e, Marlon Brando, aos nossos olhos ansiosos, se visse impedido de consumar o ato.
Algumas vaias. Sussurros e assobios. E quando o silêncio se fez novamente, vi meu amigo Adler voltar do banheiro acompanhado de um rapazinho de mais ou menos 15 anos.
Eles percorreram de mãos dadas o corredor lateral da platéia e foram sentar-se na primeira fila, justamente onde não podiam ser vistos.
Uma hora depois, estávamos todos no bar do Tobias, ocupando nossa tradicional mesa de canto. Bebendo e fumando. Falando um monte de besteiras e entoando canções esquecidas, uma vez que Tobias havia dispensado os serviços do nosso animador de auditório, o cantor, humorista, mímico e mágico; o incomparável e, senhoras e senhores, inimitável: Mr. King.
Ou seja, nada mais que um negão de quase dois metros de altura, voz de barítono, braços de estivador e hábitos de madame.
Não devia tê-lo mandado embora, Tobias. Ele animava as nossas noites.
Mas não me dava lucro. A freqüência era sempre a mesma. Com ele ou sem ele.
Por que não arruma um free-dance. Quem sabe as menininhas se animem a vir dançar.
Pra quê? Pra vocês destruírem o meu bar por causa de uma boceta?
Uma não. Talvez duas. Ou três. Quem sabe?
Ora, não é todo mundo que prefere bocetas.
Súbito, os olhos de Adler encontraram os meus voltados para ele.
Continuamos a beber e rir. Adler, incomodado, retirou-se logo depois, dizendo que iria lá fora tomar um pouco de ar fresco.
Acompanhei-o com os olhos e ao passar pela porta, ele se voltou para mim e fez um sinal que, quis acreditar, só eu percebi.
Lá fora, eu o encontrei tenso. As mãos nos bolsos da calça o que não era de seu costume. Pigarreou duas ou três vezes. Tentou acender um cigarro, mas não conseguiu. Estava diferente. Não apenas por causa do seu cabelo, agora cortado rente igual ao meu. Evitava me olhar, embora, quisesse fazê-lo.
Por que não facilita as coisas, Adler?
Ele me olhou em princípio, desconfiado, e depois, contrariado. Mas acabou cedendo:
Você estava lá não?
Sim.
E viu tudo, não é?
Não pude evitar.
Gostaria?
De não ter visto?
Sim.
Talvez.
Tenso, tentou novamente acender o cigarro. Mas novamente fracassou em sua tentativa. Depois de mais alguns segundos, em silêncio, cabisbaixo, Adler já não pôde conter as lágrimas. Elas bailavam indecisas, nas órbitas dos seus olhos azuis. E levaria alguns instantes até que cedessem e finalmente caíssem ao chão.
Não posso mais!
Não lute contra isto, Adler. Aceite!
Ele sorriu para mim em meio ao sofrimento que havia em seu olhar, em meio às lágrimas que escorriam de seu rosto.
Tentei tranqüilizá-lo, dizendo que iria lá dentro, inventaria uma boa história do tipo: Adler está passando mal e eu preciso levá-lo embora.
Fiz exatamente dessa forma.
Os pais adotivos de Adler haviam viajado. Só voltariam na semana seguinte. De modo que a casa estava vazia e, portanto, arrumada.
Importa-se se eu não acender as luzes?
Respondi que não.
Ele checava a secretária eletrônica. Recados de sua namorada, perguntando por que ele não havia telefonado.
Sentei-me no sofá da sala, e, não demorou a que Adler me servisse um uísque duplo.
Mais gelo?
Não, obrigado. Assim está bom.
Ele lhe preparou uma dose também, e após se servir, sentou-se na poltrona à minha frente.
Mas continuava incomodado. E todos os seus gestos e atitudes revelavam certo desespero diante da necessidade que sentia em se ver livre daquele incomodo.
Talvez um pouco de música?
Tentei fazê-lo ver que aquele não era o momento:
Adler, por enquanto ainda somos amigos. Apenas.
Achando graça, ele sorriu, quase engasgando com a bebida.
Você tem a virtude de saber lidar de maneira positiva com situações constrangedoras.
A menos que você pense diferente, sua opção sexual, em nada vai mudar a nossa amizade. Mudaria se você mudasse o seu caráter.
O que certamente não se dará em relação aos outros.
Respondo por mim, Adler.
Estou numa encruzilhada você há de convir.
Como assim?
Gosto de Débora.
Nada mal. Ela é sua namorada.
Mas é apenas sentimento. Não tenho nenhuma atração física por ela.
Nada bem. Mesmo assim, devia contar a ela a verdade.
Débora não iria entender.
Talvez aceite.
Ele já havia esvaziado o seu copo. Levantou-se para preparar outra dose. Tremia.
Eu disse que iria ao banheiro, e, ao passar por ele, percebi que minha proximidade lhe causara alguma perturbação.
Você... – disse ele, sem jeito, tentando, sem conseguir, desviar os olhos de mim – O que achou do meu cabelo?
Não era exatamente o que ele queria dizer. E de minha parte, também não soube encontrar melhor resposta que essa:
Acho que lhe caiu muito bem. Verdade!
Se parece com o seu não?
Sim.  Claro! Ao que tudo indica o Sr. Emilio está mesmo recuperando a freguesia.
Eu já tomava a direção do banheiro, quando Adler rompeu a pequena distância que nos separava. Estendeu-me a mão oferecendo-me outra dose de uísque. E quando fui apanhar o copo, ele recuou a mão.
Mal podia ver o seu rosto, envolvido na penumbra da sala. A única luz, vinha do poste da rua.
Então, o que me diz?
Tomando minha mão, Adler fez com que eu tocasse sua nuca onde o cabelo estava cortado bem curto. Em princípio com delicadeza, e depois, com vigor.
Ando fazendo coisas ultimamente para as quais nunca tive coragem.
De algumas, talvez se arrependa.
Mas ele pouco se importou com o meu vaticínio. Tomou novamente minha mão e a conduziu delicada e vagarosamente para o interior de sua calça.
Esqueça tudo a sua volta.
As palavras dele pareciam vindas de longe.
Feche os olhos.
Ele prosseguiu mais confiante.
E sinta...
Continuou convicto:
Todo o amor que te procura e te espera.
Ao menos por um instante, pude mesmo a acreditar naquela promessa.
E quando não puder mais resistir a esse amor...
Foi esse o momento em que abri os olhos e reencontrei o mundo ao qual estava acostumado a viver. Mas Adler, parecia acreditar muito mais do que eu, e disse:
Olhe para mim.
Fiz o que não era do meu costume. Fiz o que me fazia me sentir humilhado só de pensar na hipótese: Obedeci.
Olhe...


Despontavam os primeiros raios de sol da primavera, e eu olhava para o corpo de Adler, nu, deitado sobre a cama.
Na sala, o telefone tocava sem parar. Maldito.
Aproveitei que Adler dormia, tomei um banho quente, vesti-me, e parti decidido a jamais colocar novamente os pés naquela casa. Muito embora, dos olhos de Adler, talvez eu não pudesse mais fugir.
 11.
Sete e meia da manhã, e parece que o dia começou já faz muito tempo.
Demorei a dormir porque os acontecimentos da noite anterior roubaram-me a tranqüilidade.
Entretanto, a insistência de minha mãe, chamando-me ao portão, às cinco em ponto fez com que o sono me escapasse definitivamente.
Duas horas se passaram e eu, sentado à mesa, ouvindo os seus desaforos, suportando as suas mágoas reprimidas, esquivando-me de sua revolta.
Não sei ao certo, mas acho que foram nove ou dez cigarros que ela consumiu, poluindo não só a cozinha, mas, toda a casa. Porque, minuto a minuto, ela percorria os cômodos, perguntando por objetos ausentes, reparos não efetuados. Lembrando de coisas insignificantes e, por essa razão, insuportáveis.
Contrariada, passou o café, depois que me neguei a fazê-lo. Algumas ofensas eu ouvi calado por causa disso. Não me incomodei.
Perguntou sobre A Gazeta de Rio Claro. Disse-lhe que não circulava mais por falta de anunciantes.
Ligou o rádio. E quando percebeu que as únicas emissoras que sintonizavam eram as da capital e, de cidades da região, ela riu com deboche, dizendo que Rio Claro era de fato uma merda, uma cidade dormitório, fim-de-mundo, antro de vagabundos e desocupados. 
Também prostitutas, ocorreu-me a ideia de lembrá-la. E o teria feito, com todo meu cinismo, não fosse o ranço de bondade que ainda me restava.
Ela se foi, horas depois, sob o pretexto de comprar cigarros. Sem nenhum remorso, senti-me aliviado e dei graças a Deus.
Dona Áurea roubara o meu sono e me dera uma canseira tremenda.
De tal modo que, quando saí para a rua e olhei para o céu, já não pude sentir a esperança renovada com a qual me deparava a cada manhã.
Caminhei um pouco pela praia e, longe, avistei o Poeta. Ele também caminhava próximo das ondas, que, teimosas e agora impacientes, sempre alcançavam os seus pés.  Súbito, ele parou e, acho que nada a sua volta, nem o cachorro brincalhão que o acompanhava, nem o marulho das ondas e o ribombar dos trovões ou a estripulia das maritacas, seriam capaz de demovê-lo daquele silêncio ou desviar-lhe o olhar do horizonte.
Dali, o Poeta não arredaria o pé durante horas. Imóvel como estátua, firme como torre, ele permaneceria, talvez, tentando desfazer-se na imensidão do mar ou encontrar-se consigo mesmo, onde, provavelmente, havia se perdido. 
E eu, depois de vivenciar o drama épico e patético de Dona Áurea e a performance intimista do Poeta, fui tratar de ganhar uns trocados, varrendo a calçada do bar do Tobias, mas, como ele estava com o caixa zerado, e demoraria até que o primeiro dos seus clientes viesse comprar o pãozinho e o leite daquela manhã, ele me pagou com uns tragos de conhaque o que fez com que eu parasse de tremer de frio por alguns minutos. Nada mal. Às vezes, uns tragos é tudo o que se pode arrumar.
Precisa comprar uma jaqueta.
Dê-me um emprego e compro duas.
Sabe que não posso. O que ganho com esta espelunca mal dá para o meu sustento.
Por que não volta a escrever?
Tá brincando colega!
Parecia incomodado com a sugestão.
Sim. Por que não tenta de novo?  Suba a serra, Tobias, feito um bandeirante. Vá trabalhar num jornal decente. Durante um ano. Não mais que isso. Faça essa experiência. Am? O que me diz?
E a bodega aqui?
Os olhos de Tobias percorreram o interior do bar.
Deixe comigo. Não precisa fechar. Eu cuido pra você.
Ele pareceu considerar a ideia.
Se depois de um ano, quiser voltar, volte e o bar será seu. Se não quiser, Deus te abençoe, e seja feliz.
Por que está dizendo isso, alemão?
Porque duas coisas eu não suporto nesta vida, meu caro Tobias: gente medíocre feito eu; e talento desperdiçado feito você.
Imbecil, não fale assim. Você não é medíocre.
Não? Não! Não, eu não sou. Sou um tremendo imbecil, não é mesmo? Escute. Vou lhe dizer o que sou: Sou o tipo do cara que sonha fazer mil coisas, mas acaba não fazendo nenhuma. Por absoluta falta de capacidade.
Como você é ingênuo! Você tem 21 anos e ainda não entendeu o que faz toda a diferença.
Meus olhos, atentos na garrafa de conhaque sobre o balcão, de repente, voltaram-se para Tobias.
Para sonhar, basta vontade. Para fazer acontecer é preciso trabalho.
Está insinuando que sou vagabundo?
Filósofos não são vagabundos.
E cartunistas, são?
Tobias encerrou a conversa com um suspiro, sugerindo que eu tomasse outro gole para espantar o frio.























12.
E desde quando você desenha?
Fred, eu sou capaz de acordar no meio da noite, desenhando paisagens e pessoas que jamais conheci.
E guarda o que desenha, pelo menos?
Alguns deles.
Deixe-me ver.
Entusiasmado, fui até o quarto pegar o caderno que eu escondia sob o colchão.
Puxa!
Que bom, ele gostou, pensei.
Cara, como você desenha mal!
Arranquei o caderno de suas mãos.
Dê-me isto!
O que são esses desenhos? Parecem feitos por alguém que passa as noites bebendo conhaque em bares deprimentes e prostíbulos imundos?
São caricaturas.
O quê?
Desenhos que realçam com algum exagero as características físicas mais marcantes de uma pessoa.
Onde estão as dos seus amigos?
Noutro caderno.
Guarde-o. Bem escondido. Se é que deseja preservar as amizades que possui.
E ao dizer isso ele riu. Aquela sua risada debochada e nojenta. E troçando, correu para longe de mim em direção à velha fábrica de tecidos, em frente da qual, costumávamos nos reunir.
Guardei o caderno no bolso de trás da calça e fui ter com ele, disposto a lhe falar algumas verdades.
Mas logo mudei de ideia quando vi Fred sentado na guia da calçada, as pernas encolhidas e, cabisbaixo.
O que está acontecendo, Fred?
O de sempre.
Era o maldito pai dele de novo.
Você tem que dar um jeito nesta situação.
Só matando aquele desgraçado do meu pai.
E mofar na cadeia os melhores anos de sua vida?
Os melhores? Deus me livre de conhecer os piores, então!
Sua mãe, como ela se sente, o que ela diz?
Incapaz de uma atitude. E calada como sempre.
Por que você não vai embora, Fred? – finalmente tive coragem para lhe dizer o que eu sempre quisera – Tente a vida noutro lugar. Talvez tenha mais sorte. Quem sabe.
Não posso.
E por que não pode?
Porque assim como você, eu gosto deste lugar. Gosto dos meus amigos.
Gosta de seu pai?
Sim. Até mesmo dele eu gosto.
Apesar de tudo o que ele lhe faz suportar?
Já disse. Gosto, mesmo assim.
Apenas porque ele é o seu pai?
Não! É porque eu gosto dele! De verdade!
Então você gosta é de sofrer, Fred.
Talvez. Há quem encontre satisfação no sofrimento.
Não é o seu caso.
Não. Mas entendo que é melhor suportar a dor do que causá-la.
Anda assistindo a missas demais, colega.
Minha mãe me obriga.
E você não se recusa?
Nunca.
E por quê?
Porque eu e ela temos um compromisso. Temos de suportar tudo isso. Juntos.
Quem disse?
A vida. Ela nos mostra essa realidade a cada manhã.
Quando seu pai chega, capotando de bêbado, quebrando tudo o que encontra pela frente?
Fred se afastou.
Não quero mais falar sobre este assunto.
Olhei, de repente, para o lado, e vi que na outra calçada, o Poeta presenciava o nosso diálogo.
Seus olhos, que sempre fugiam dos meus, dessa vez me observaram por um instante. O suficiente para que eu me sentisse estimulado a atravessar a rua e ir ao seu encontro. Mas antes que o fizesse, parecendo advinhar o meu pensamento, ele tomou a direção do bar do Tobias, enquanto o meu amigo Fred, ao mesmo tempo, deixava-me a sós, e tomava o rumo da praia.
Naquele instante, o vazio jamais preenchido de minha existência, se agigantara, tragando-me para dentro de si. De onde levaria alguns dias, talvez semanas, até que me cuspisse para fora e para os braços daquela maldita realidade, cada vez mais insuportável para mim.























13.
Na velha estação ferroviária ficavam as oficinas, aonde, nos melhores dias de Rio Claro, os trens chegavam, alguns, para um reparo, outros para o esquecimento, e, posteriormente, o desmanche.
Mas agora a estação estava abandonada, os barracões das oficinas fechados com grossas correntes e enormes cadeados.
Por toda a extensão do pátio, em torno da linha férrea, o mato estava crescido. E, no interior do prédio, o escritório do chefe da estação, e também o do telegrafista, tinham os móveis cobertos por lençóis brancos, enquanto que, nas outras salas, pó, sujeira e bagunça havia por toda parte.
Era o que se podia observar através dos vidros, daquelas repartições, outrora, tão movimentadas, e naqueles dias, exalando ares de abandono e solidão.
Portanto, ninguém jamais acreditaria que eu a conheci naquele lugar.
Foi num final de tarde, e eu estava sentado num dos muitos bancos de madeira espalhados pela plataforma da velha estação.
Ela sentou-se ao meu lado, sem ao menos me cumprimentar. Ficou algum tempo em silêncio, como se isso lhe bastasse.
Mas a esse respeito eu estava enganado, pois logo percebi que ela desejava de mim algo mais do que silêncio, desejava a minha companhia.
Tocou o meu rosto com delicadeza, sem me perder do seu olhar. Tateou os seus dedos delicados no meu rosto até alcançar minha boca, ainda sem me perder de vista. E não estivesse eu, diante de minha prima de 16 anos, eu acreditaria piamente que estava diante de uma mulher madura e experiente.
Ela me tomou pela mão, e assim, caminhamos juntos. Eu, evitando olhá-la, e ela, olhando para o chão. Algumas vezes, afastava os cabelos que lhe caiam sobre os olhos.
Naquele final de tarde, caminhamos assim, juntos e em silêncio, margeando a linha férrea, em direção à sua casa, não muito longe dali. Passamos sobre o pontilhão, que delimitava a parte nova e a parte velha da cidade, e, nesse momento, olhei para trás, e muito mais longe do que a estação ferroviária foi ficando a minha inocência. Longe, e nada preocupada ou sequer constrangida por me abandonar.
Jane havia se mudado com seus pais há menos de um mês. Nunca nos tínhamos visto antes. Ela sabia que em sua casa não havia ninguém àquela hora. O pai ainda estava a trabalho, como vigilante da fábrica de tecidos. E a mãe, bem... Estava na igreja.
No mês de janeiro, as goiabeiras começam a brotar os frutos. Aquele pé ficava atrás da casa de Jane. E nós também ali ficamos até anoitecer.
De repente, essas lembranças me ocorreram sem que eu as tivesse chamado.
Mas a vida fez Jane desaparecer das minhas lembranças para surgir novamente no mundo real. 
Caminhava agora sobre os trilhos. Tentava equilibrar-se entre os dormentes e pedriscos.
Seis anos haviam se passado. Seis anos depois, e Jane não era mais uma menina.
Trajava-se demasiadamente elegante para o final de tarde de uma segunda-feira. Vestido de passeio, sapato de salto alto, cabelos ao vento. Pulseiras nos braços, e bijuterias no pescoço.
No mesmo lugar por onde juntos caminhamos quando tínhamos 16 anos, eu a vi ressurgir. Agora, uma mulher.
À distância, demonstrava ares de poder, próprio das mulheres bonitas. Mas tive a certeza de que, se olhasse nos seus olhos, eu reencontraria a fragilidade, que, me convencera capaz de fazer de minha prima Jane a mulher mais feliz do mundo, mesmo sabendo o quanto de tristeza e angústia aquilo poderia custar a nós dois.
Seis anos depois, e a impressão que ela me causara fora mais interessante e mais perturbadora do que o incomparável nascer do dia, que eu presenciava, sentado na orla da praia, quase todas as manhãs.
Ao aproximar-se, pensei que ela passaria sem se dar conta de mim. E eu estava certo, ela passou, e continuou caminhando pela plataforma, rumo ao portão de embarque, mas, ao se deparar com as grossas correntes que o mantinham fechado, demonstrou-se irritada. Chacoalhou e empurrou com o pé o portão. Chamou sem ser atendida. Olhou em redor, e só então percebeu que alguma coisa por ali havia mudado.
Voltou-se em minha direção, e, em meios aos pombos, caminhou ao meu encontro.
Eu continuei sentado, cabisbaixo, as pernas esticadas, as mãos nos bolsos.
O que é que acontece por aqui, afinal de contas?
Ao perguntar, ela tinha as mãos na cintura e um ar indolente, com o qual, talvez pretendesse me intimidar.
Demonstrando calor, juntou os seus longos cabelos sobre a cabeça, formando um rabicó que logo se desfez com o vento.
Então nos olhamos.
Jane ainda procurou por alguma coisa atrás de si. Talvez a vida que deixara para trás. E que, movida por repentino ímpeto, acreditara poder recuperar. Mas seu olhar faiscante não se manteve longe do meu por muito tempo. O fogo do seu olhar foi desaparecendo, foi se apagando aos poucos, pela indiferença, a tristeza e a revolta que encontrara no meu.
É aqui que os elefantes se refugiam pra morrer?
Vez em quando aparece um.
Ela fez menção de sorrir. Mas se manteve durona. E à distãncia.
Sentou-se no banco ao lado, e até que viesse ocupar o meu, trocamos, desconfiados, dois ou três olhares.
E ficamos assim um bom tempo. Dois ou três minutos. O que se constitui muito tempo para pessoas que não se conhecem e não se vêem há 6 longos anos.
Finalmente ela estendeu a mão sobre minha perna, esperando que eu fizesse o mesmo. Hesitei. Porque estava decidido a evitá-la. E o faria por toda a vida. Sim. Esta seria a minha atitude.  Não fosse ela, a minha prima Jane.
Ficamos nos olhando e dezenas de ofensas bailaram e morreram na ponta da minha língua. Apenas uma, insignificante, sobreviveu e ganhou contornos de provocação:
Você devia ter passado no armazém antes de vir para cá.
Por quê?
Pra comprar goiabas. O pé que havia atrás da sua casa, não existe mais.
Além disto, o que é que não existe mais por aqui?
Talvez fosse melhor se eu lhe dissesse a única coisa que ainda existe até hoje.
Uma chama se acendeu no olhar de Jane nesse momento. Mas com uma lágrima, ela tratou de apagá-la.
Uma coisa. Uma única coisa? Pois se é tão especial assim, é melhor que seja guardada. Como um tesouro. Que não pode ser tocado. E nem compartilhado.
Riqueza estagnada destrói. Água parada apodrece. Amor que não se vive, sufoca. E mata.
Aos 22 anos, não?
Sim.
Por isso estou aqui.
Mas não está sozinha, Jane. Não é mesmo?



A noite demora a vir. A luz incomoda. A luz interior. Ela me desperta. Sempre o faz. É implacável. E me traz à realidade. Brinca com a morte, que eu tenho ao alcance de minhas mãos, todos os dias. Brinca. Despreza a morte. Faz e desfaz da morte como esta fosse um punhado de argila.
O Poeta, também está morto, embora, a essa hora da noite, vague pelas ruas. As coisas são assim. Aos meus olhos são. Porque a ideia da felicidade não ultrapassa para mim as fronteiras da esperança. Não me seduz. Não convence.
E nem mesmo Jane, agora sei, seria capaz de fazê-lo.
No escuro. É como estou. É mais cômodo. Mais leve. Suave. Delicado. É algo que se satisfaz com a solidão.
Acariciado pelo nada.  Fustigado pelo vento que me excita. Revolta, o vento.
Onde estou?
Pergunta que todos se fazem quando retornam da fuga de si mesmos a que todos têm direito. Embora não tenham coragem.
Pergunta:
Por que é que ao rememorar esses acontecimentos eu penso em Adler? No seu olhar. Na delicadeza que nele encontro, e que sempre busquei, sem jamais ter encontrado.
Resposta:
Volte a estudar. Trabalhe. Produza.
Ideias de Adler. Não minhas.
Ele ousa afrontar as minhas convicções. Mas o faz sem ser rude.
Reconstrua sua vida, ele não se cansa de me dizer. Reconstrua. Ainda é tempo.
Suas palavras penetram no meu pensamento e dele se apoderam.
Mas as ondas novamente se quebram nas pedras. É quase manhã. Navios cargueiros cruzam o horizonte, longe.
Em meu redor, dentro de mim, o de sempre: o nada.
Pergunta:
Onde está Jane? Onde ela se foi? Onde? Por que voltou?... Por quê?
Resposta?
Nenhuma.
Preguiçosamente, o dia desperta sem me trazer essas respostas. Momento de fechar os olhos.







14.
Um homem estava caído na calçada, em frente à barbearia do Sr. Emilio.
Quem era aquele homem? Melhor perguntar quem seria o próximo?
Em Rio Claro, tudo começava com hora marcada para terminar. As lojas do comércio inauguravam com anúncios grandiosos, espocar de rojões e pipocas de graça ao cliente amigo. Meses depois, fechavam as portas. O time de futebol da cidade, por qual milagre? Chegou a disputar a primeira divisão de profissionais do estado. Não durara um ano. E seu estádio, fora arrematado em leilão por um valor irrisório. A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, referência em tempos idos, transformara-se em Curso Técnico que prometia formar em até dois anos, competentes gestores da área ambiental. De modo que aquilo não era uma cidade. Apenas um depósito de sonhos interrompidos, amores desfeitos, vidas desmanchadas pelo vento devastador da descrença que acometia a todos.
Cedo descobri que as pessoas em Rio Claro tinham o infeliz hábito de almejar coisas impossíveis. Eis o motivo, para eu estar entre eles? Provavelmente.
O homem continuava caído na calçada; o corpo machucado, as roupas carcomidas, e ensopadas pela chuva, era Walter Adler, o Poeta. Pai biológico de André Adler, meu amigo, talvez o melhor, talvez mais do que um amigo.
Mas o filho não sabia sobre o pai. Nada sabia sobre ele. Sequer o nome. Quanto menos o paradeiro. Jamais suspeitaria, portanto que aquele sujeito maltrapilho, fazedor de versos; cheirando a cachaça, quase sempre, e ao qual se referia com desprezo, era o sujeito responsável por sua inenarrável experiência humana.
A chuva molhara O Poeta, fizera descansar o seu corpo sofrido e libertara momentaneamente a sua alma atormentada, mas deixara quase intacto o caderno de notas que ele trazia no bolso de seu paletó.
Não tivesse eu tomado uns tragos naquela noite, não tivesse me despedido mais cedo do bar do Tobias e dos amigos que lá deixara a oportunidade não se faria tão clara e perturbadora à minha frente. Bastou aproximar-me daquele corpo desfalecido, agachar-me, e apanhar com cuidado o caderno de dentro do bolso do paletó e descobrir a ligação profunda e oculta que havia entre aquele doido revoltado e fazedor de versos e o meu amigo Adler.
Passei a noite toda lendo aquele caderno. Sentindo-me mais do que um ladrão por apanhá-lo, um usurpador sujo e traiçoeiro movido pelo único objetivo de satisfazer uma incômoda curiosidade alimentada há tanto tempo.
Mas aquelas linhas tão esclarecedoras e instigantes, não me permitiam me furtar da lembrança do Poeta, caído na calçada, de bruços, sob a chuva.
Os erros de ortografia, as frases incompletas, não ofuscavam o brilhantismo de um homem atingido pela dor e dominado pela angústia.
Nem mesmo o olhar doce e meigo do filho recém nascido lhe serviu de estímulo; dobrara os joelhos ante a revolta, como se, pela vida, jamais houvesse tido consideração.
Restaram-lhe versos. E alguma prosa. Se já não tinha sentimentos, flertava com as palavras. Talvez tenha acreditado que o resultado seria igual. E era. Dava pra mentir do mesmo modo. Mentir sempre. E ninguém perceberia qual a diferença.
O Poeta. Não aquele que escreve “... não restará nem memória daquilo que o tempo grava” Mas o que gostaria de ter escrito “Construa um muro em torno/ feche as janelas/ Não deixe o sol entrar”.
Sentado na praia, olhando em direção ao mar, enquanto amanhecia, fiquei a me perguntar, se estaria O Poeta, procurando por seu caderno.
Talvez, dele, nem se lembrasse.
15.
A mãe de Jane me odiava. Começara a ter esse sentimento destrutivo quando descobrira que a filha querida havia perdido a virgindade com o primo vagabundo e inconseqüente.
Tudo pioraria tempos depois...
Jane, você é linda.
E quando uma mulher se descobre linda, aos 16 anos, tudo o que deseja é preencher de flores de esperança e alegria o vaso do seu coração. E que a chama ardente de outro corpo, alimente o calor do seu, e se alastre, e queime, até que restem apenas cinzas.
Por que você me deixou?
Estávamos no bar do Tobias, quando lhe fiz essa pergunta.
Ela me olhou, com ternura. Mas, de repente, talvez porque se lembrasse de que seis anos haviam se passado, desfez o sorriso, fechou o semblante, e desviou os olhos de mim para a garrafa de conhaque sobre a mesa.
Você não ia à missa aos domingos.
Que resposta mais cretina, pensei.
A irônica ponderação me irritara.
Escute. Por favor, quero lhe pedir uma coisa, posso?
Claro que sim.
Pois bem. Não leve as coisas por esse lado, Jane. Por favor! Não venha me falar de religião. Ou qualquer outra idiotice do gênero.
Por quê? O assunto o incomoda?
Pensei levantar-me da cadeira, mas desisti da ideia.
Vou lhe dizer o que me incomoda:
Mas antes de fazê-lo, acendi um cigarro. Então disse:
Em algum canto desta cidade, há um homem que carrega consigo a angústia de uma dor insuportável. Algo que palavra ou promessa nenhuma, jamais, sequer amenizou. Ele é um poeta. Mas eu não.
Ela sabia exatamente sobre o que eu estava falando.
Não entendo. Você fez a sua escolha. Fez por onde. Quis e teve o que queria. Este foi o seu prêmio. O maior de todos.
Então o que eu faço? Acabaram-se os versos, o livro terminou. Devo fechá-lo, colocá-lo de lado e esquecê-lo?
Deve procurar outro livro. Devia tê-lo feito durante esses anos.
E você? O fez?
Não gosto de poesia.
Prefere os dramas?
Preferia não ter aprendido a ler..
Não me agüentei.
Engraçado. Já faz uma semana que você retornou Jane, sabe-se lá de onde. Mas aquele olhar meigo e encantador, os cabelos longos e bonitos, onde foi que se perderam? O andar sensual, a voz carinhosa, o trato gentil que tinha para com as pessoas...
Ela sequer fez menção de responder. Continuou com os olhos voltados para a garrafa de conhaque sobre a mesa; acendeu um cigarro, e, depois, ajeitou o cabelo com a mão, ainda evitando me olhar.
Partimos na manhã seguinte. Dentro do ônibus, durante a viagem, ela não disse nada. Chegamos a São Paulo por volta de meio dia. Chovia bastante. Entramos num coletivo e depois de quase duas horas, chegamos ao destino de nossa viagem.
Era um bairro de periferia. Rua sem asfalto, lama por toda parte. Casas jamais concluídas. Vielas sombrias, escadarias intermináveis. Becos escuros que pareciam servir de refúgio da vergonha e da maldade.
Algumas pessoas que cruzavam conosco, olhavam para Jane como se a conhecessem. Mas ela evitava cumprimentá-los. Quando passamos diante de um bar, repleto de desocupados, os assobios foram muitos.
Não cruzamos com ninguém que se demonstrasse satisfeito com a nossa presença. As mulheres principalmente. E nem mesmo as crianças.
Do alto de uma colina – lugar retirado e quase ermo, avistamos um cemitério.
Caminhamos entre as sepulturas, até que parássemos diante de uma.
Foi então que ela ajoelhou-se. E levando as mãos ao rosto, assim permaneceu por algum tempo, em silêncio. Quando se levantou, seus olhos estavam vermelhos, porque havia chorado. Olhou-me demoradamente, e com a tristeza do seu olhar, substituiu as palavras que lhe faltavam.
Afastei-me, mas não fui muito além. Ela me chamou. Cabisbaixo, fiquei a ouvi-la.
O que você queria de mim está ali dentro.
Era uma sepultara ou algo semelhante a isso, cuja única identificação, era uma cruz caiada, pequena, deformada e consumida pelo cupim.
Quanto tempo você iria suportar o convívio de uma criança retardada, com o intestino exposto? Que mal podia sustentar a cabeça. E que passaria o resto da vida necessitando de cuidados especiais. Às vezes, respirando por aparelhos. Alguém que jamais andaria. Jamais saberia quem você é. Quem eu sou. O que é a vida. E o mundo.
Jane abaixou-se e, com delicadeza, tocou a pequena cruz caiada que marcava a sepultura.
Diga bom dia, Gustavo. Este é o seu pai.
























16.
De dentro do sutiã, Jane tirou uma foto do dia em que batizara Gustavo no hospital.
Um bom padre. Veio assim que pedi, e não me cobrou absolutamente nada.
Dissera isso com lágrimas nos olhos.
Horas depois, estávamos na Rodoviária. Jane havia retornado do banheiro.
Da próxima vez eu o levo pra conhecer o meu estabelecimento.
Dissera isto ajeitando o cabelo olhando-se no espelhinho do estojo de maquiagem.
Olhei desconfiado. Descrente do que ela dizia.
Já fui patroa, querido. Tinha seis meninas trabalhando sob as minhas ordens. E eram todas bonitas. Ganhamos algum dinheiro, durante algum tempo. Mas então houve uma briga por causa de uma partida de bilhar. E o movimento caiu depois disso. E não pudemos mais contribuir para o sindicato. Se é que me entende... Então, eles se comportaram como meninos maus... E destruíram tudo.
A história não me convencera. Mas aquela era a história, como eu viria a confirmar depois.
E quando todos já tinham voltado pra suas casas, enquanto outros menos afortunados davam entrada no hospital, você varria a sujeira e colocava as coisas no seu devido lugar você se lembrou de mim e do seu passado?
Não.
Então por que voltou pra Rio Claro?
Por uma razão muito forte. Mas não por alguém. Nem mesmo por você – abaixou a cabeça e procurou o maço de cigarros na bolsa, antes de dizer – Desculpe, mas é verdade.
Entramos no ônibus. E se repetira na volta o que ocorrera na ida. Em nenhum momento Jane me dirigira palavra.
Aquilo me deixara enfurecido. E esgotara a minha paciência.
A alguns quilômetros antes de Rio Claro, paramos num posto de beira de estrada. Já era noite. Fui ao banheiro e esperei que ela retornasse de sua ida também.
Compramos um refrigerante e ficamos a bebê-lo juntos, encostados no ônibus.
Sabe que, durante muito tempo, eu fora todas as tardes naquela maldita estação de trens, e lá ficava até anoitecer, esperando você chegar?
E por que fazia isto?
Pelo mesmo motivo que me faz agora estar ao seu lado, Jane.
Ela se afastou, e, antes de subir ao ônibus, voltou-se para mim.
Nós não tínhamos futuro! Nunca tivemos. E, pra ser sincero, acho que nunca teríamos.
Apaguei o cigarro com a sola do tênis e, contrariado, fui alcançá-la já dentro do ônibus, sentada na poltrona.
Mas não precisávamos ter filhos! – eu disse.
Mas eu queria tê-los!
Para Jane, esta situação definia as coisas. Colocava uma pedra sobre qualquer possibilidade de um relacionamento afetivo e duradouro entre nós. Contudo, eu estava disposto a remover a pedra. E acreditava poder fazê-lo. 





17.
Sentados na ponte sobre o canal, passávamos horas. Naquela tarde, Nico havia comprado uma garrafa de vinho, da qual, todos bebericaram um pouco, saudando a memória de Chris. Isto era indispensável. Para nós, um ritual sagrado.
Depois de conversarmos um pouco, agora estávamos em silêncio. Fred observava o movimento das nuvens que se deslocavam em direção a serra. Nico tinha os olhos voltados para a velha e abandonada estação ferroviária. E Adler, o olhar extático numa direção qualquer, parecia ter o pensamento longe. Muito longe. O que não era bom sinal. E não demoramos a confirmar isso.
É preciso detalhar o fracasso das pessoas que sucumbem com a doença.
Do que está falando, Adler?
Li num jornal velho, que por acaso encontrei lá em casa, em meio a outras porcarias.
E concorda com isso?
Sim. Deve ser o caso do Poeta.
E por que, de repente, deu pra questionar sobre o assunto? – perguntei certo de que ele sequer desconfiava que se referisse ao próprio pai.
À toa. Estava pensando. O que leva um homem a viver desse modo?
Talvez seja uma dor a qual ele não consiga suportar.
Acho que eu também não conseguiria.
Ou não está conseguindo?
Pode ser.
Não espere que a dor tome conta de você, Adler.
O que significa?
Que deve renunciar aos prazeres do mundo.
Ele sorriu ante a minha sugestão. E ponderou.
Ora, nem mesmo o sábio Vieira pôde compreender isto.
Mas não é questão de entendimento, Adler. E sim, atitude.
O que, aliás, não é sua especialidade.
E todos riram. Até mesmo o Sr. Emilio, que, naquele momento, cruzava conosco com suas tralhas, retornando de mais uma pescaria.
Terminamos a garrafa de vinho e nos desfizemos dela, atirando-a para o alto. Não vi quando a garrafa precipitou-se nas águas geladas do canal.
Nico foi o primeiro a se retirar. Anoitecia. Depois, foi a vez de Fred. E quando as luzes dos postes da orla da praia se acenderam, ao longe, estávamos eu e Adler, a sós, ainda sentados na ponte.
Ele me convidou para dar uma volta pela praia, e eu aceitei, imaginando que, enquanto caminhássemos conversando eu reuniria coragem para lhe falar sobre O Poeta, seu pai.

* * *
Tenho saudades.
Demorou até que ele dissesse isto.
Do quê?
Do que não vivi.
O carinho do seu pai? Por exemplo?
A atenção dele.
Nunca teve notícias do seu pai?
Não.
Gostaria?
Às vezes, sim.
Como você o imagina?
Alguém feito eu.
Mirei os olhos em direção ao banco de pedras, onde O Poeta costumava passar suas manhãs.
Talvez ele seja mesmo, feito você, Adler. Por que não?
E Adler me ouviu dizer isto com um brilho nos olhos que jamais pude esquecer.
Já havíamos nos distanciado bastante, enquanto caminhávamos pela praia.
Um garoto, apanhando latinhas passou por nós. Levava nas costas um saco plástico cheio delas.
Há pessoas que juntam as coisas – ele disse – Eu gostaria de me desfazer das minhas.
Quem junta é porque tem necessidades.
E quem as desfaz, também.
E que necessidades você tem, Adler, pra se desfazer de suas coisas?
Simples feito um mais um: Eu não me aceito – olhou-me, demoradamente, revelando em seu olhar contrariedade e revolta – Pronto. Respondido.  Eu não queria que as coisas fossem assim. Mas elas são.
E por que não tenta mudá-las?
Porque não faz diferença, quando se desiste do principal.
Quando a chama se apaga?
Sim.
Talvez o vento possa reacendê-la, Adler.
No meu caso, não.
Por quê?
Simples feito dois mais dois: O que anima este corpo que você vê e conhece tão bem, embora o repudie, é apenas o desejo do Criador. Eu, na verdade, já estou longe. E não quero voltar.
* * *
Aos 18 anos, Adler havia perdido o encanto pela vida. Porque havia feito as perguntas que todos nós devemos evitar. Batido de frente com a realidade que tudo aniquila.
Feito seu pai, embora não soubesse, escrevia. O primeiro texto, Adler redigira aos 14 anos, e me pedira para corrigir. Exceto duas pontuações, nada mais precisei eliminar ou acrescentar. O texto estava pronto. Uma prosa com 15 linhas, na qual, Adler afirmava que pior do que plantar e não colher é não ter semente para plantar. Porque o não ter permite suposições que atormentam, e estabelece na mente e no coração um vazio jamais preenchido. O inferno da derrota, da frustração, ainda é alguma coisa. O nada, a ausência da luta, a sua impossibilidade é insuportável
Adler escrevia, sabendo que, provavelmente, não seria publicado. E Adler estava convencido que não sabia fazer outra coisa que não fosse escrever. Amava o pai, mesmo sem conhecê-lo. E estava cansado disto. Cansado de viver de esperança. Ela, a esperança, o ajudara a chegar aos 18 anos completados naquele dia. Talvez não pudesse levá-lo mais adiante.






18.
Os livros e os cd’s estavam dentro de uma caixa de papelão sobre a mesa que costumávamos ocupar.
Por que estas coisas estão aqui, Tobias?
Ele não demorou a me responder.
Porque a vida começa a mudar, alemão.
Puxa, há quanto tempo desejo ouvir isso de alguém!
E, nesse momento, vindo do banheiro feminino e, bela como nunca, Jane. A minha prima Jane.
Ela tinha um aspecto melhor do que da última vez que nos havíamos visto.
Oi!
Respondi, sorrindo também.
E fiquei olhando para Tobias.
Garoto, nós teremos um jornal!
Ele parecia realmente entusiasmado com a ideia.
Teremos?
Sim. Eu edito a porcaria. E você vende as propagandas.
Para quem?
Ora, se vire. Isto não é problema meu.
E as máquinas? Pra rodar o jornal?
Daremos um jeito.
Jane, por favor, debaixo daquele balcão, costuma haver um termômetro. Você poderia tirar a temperatura do nosso amigo Tobias?
Ora, seu merda beberrão, deixe de tolice. Estou falando sério. Redatores, nós já temos dois: o doido que anda pelas ruas, escrevendo coisas nas paredes e nos muros, e aquele seu amigo esquisito, como é mesmo o nome dele?
Adler.
Abner?
Adler!
Sim.
E quanto a Jane?
Bem, ela pode, por enquanto, atender ao telefone e anotar os recados.
História mais idiota aquilo que não tinha outro objetivo senão desviar o assunto em questão.
De onde vocês dois se conhecem?
Nosso amigo Tobias, agora editor de jornal percebeu que o argumento não me convencera. Fora para trás do balcão, preparar uma bebida, enquanto pensava um pouco o que iria me responder.
Uma longa história – disse finalmente – Na verdade, daria uma matéria para seis edições.
Espero que não seja na página policial.
E qual o problema se fosse?
Nenhum – respondi contrariado.
Tobias olhava-me apreensivo.
Depois, conversamos, eu disse para Jane, antes de me retirar.
Não vai tomar o seu maldito conhaque?
Sequer respondi.
Lá fora, encontrei Fred, cruzando a rua em direção ao bar.
Sabe da última?
Teremos um jornal
A resposta dele fora sem nenhum entusiasmo.
Não imaginei que soubesse.
Só você, pelo jeito, ainda não sabia.
Escute. E responda-me: Quem teve a ideia?
Jane.
E como ela conseguiu convencer o Tobias?
Mulheres. Possuem recursos, dos quais não dispomos.
Ele disse que já a conhece há bastante tempo. Não disse?
Ele é paulistano, não se esqueça. E ela se mandou pra lá quando ainda tinha tranças. E só agora voltou. Não foi?
Sim.
Mas porque toda essa preocupação? Ela é sua prima, não é sua esposa. Se tiver que se ferrar, que se ferre. Há seis anos foi ela que o deixou na pior. Portanto, não merece nenhuma consideração de sua parte.
Isto quem decide sou eu.
Poupe-me de ouvir a resposta.  Ou lhe quebro o nariz, aqui mesmo.
Gostaria que tivesse a mesma valentia diante de seu pai, Fred.
Ele desfez o seu ímpeto no mesmo instante. Baixou os olhos, enfiou as mãos no bolso da calça, e chutou o chão com o bico do tênis, duas ou três vezes, feito um pangaré velho parado sob o sol escaldante depois de percorrer léguas de distância.
Vamos beber, disse, desolado.


19.
Nossa maior dificuldade seria estourar um enorme cadeado. Ao menos imaginávamos que seria. Contudo, não foi preciso. Para nossa surpresa o portão estava apenas encostado.
Desde que A Gazeta de Rio Claro encerrara as atividades, nunca mais ninguém fora visto naquele prédio onde ficava o maquinário no qual era impresso o matutino.
Evidentemente não teríamos recursos para retornar com edições diárias. Talvez, com algum esforço, semanais. Mas isso tudo não passava de tola pretensão.
Todos nós estávamos envolvidos com o projeto. Tobias, a viga mestra do projeto, eu, Jane, Fred, Nico, Adler, e, claro, O Poeta, mesmo que ao seu modo, ou seja, alheio a tudo.
Fred e Nico fariam as máquinas funcionar; eu seria uma espécie de produtor; Jane seria a secretária; Tobias, o editor e jornalista responsável. E caberia a Adler a função mais nobre do jornal: escrever. O Poeta? Bem, ele seria o nosso colunista exclusivo.
Ao menos uma vez seríamos destaque em alguma espelunca de jornal; o nosso. Quando a polícia viesse nos prender, evidentemente, por invasão de imóvel alheio e apropriação indébita daqueles benditos maquinários.
Era ainda madrugada quando entramos na ponta dos pés, Nico à frente, com uma lanterna na mão.
A última edição de A Gazeta de Rio Claro de 22 de março de 2000 ainda estava nas rotativas.
Enormes bobinas de papel se acumulavam nos fundos do prédio.
A energia elétrica estava cortada havia algum tempo, mas nada que uma boa gambiarra não resolvesse. E para isto, tínhamos Fred.
Embora as edições fossem semanais, rodaríamos o jornal de madrugada, quando toda a população de cinco mil habitantes daquela esquecida cidade litorânea, dormia, sem suspeitar que próximo estava o dia em que sob a porta de suas casas,  logo pela manhã, encontrariam a edição número zero da, rufem os tambores, senhoras e senhores, “Folha de Rio Claro – A insuperável”.
Mas afinal, por que tudo isso? Simples. Precisávamos fazer algo de nossas vidas. Algo que nos fizesse nos sentirmos úteis. E felizes.


















20.
Malas e sacolas estavam no chão da sala. Os olhos dela voltados para mim, e os meus, para o espelho.
Você não vai ficar aqui. Desista da ideia.
A afirmação não teria grande importância, se não fosse para minha mãe que eu a dirigira.
Como assim?
Simplesmente não vai.
Pois me dê um motivo.
Nenhum.
Seu atrevido. Acha que pode me desafiar? Com que direito?
O de quem cuida desta casa, desde que você saiu por aquela maldita porta.
Ela estava ruborizada. Tinha lágrimas nos olhos. E suas pálpebras e lábios tremiam. Também suas mãos. Mas isso nenhum pouco me incomodava.
Nem parece o meu filho.
Talvez eu não seja mesmo.
Mas um dia foi.
Não sei.
Dona Áurea, melhor chamá-la assim, deu a volta em torno da mesinha de centro da sala, e após folhear umas revistas ali colocadas, sentou-se no sofá.
Acendeu um cigarro, antes de cruzar as pernas e colocar o cinzeiro sobre o joelho.
Ficou a mexer nos cabelos, ajeitando-os atrás das orelhas.
Fez-se silêncio entre nós. Interrompido, de repente, por algo inusitado.
Pois ela vai ficar aqui sim. E eu também.
Voltei-me na direção da porta da sala, e lá estava Jane; a mão, apoiada no batente, olhando-me como quem estuda um adversário.
Por falar nisso, onde é que você tem ficado esse tempo todo?
Mas ela demorou a me responder. E quando fez, já não fora mais de modo autoritário.
Com Tobias.
Não diga? Quê surpresa! Fazendo o quê?
Lavando copos. Da mesma forma como você varre a calçada pra ele, todas as manhãs.
Por isso mesmo que, exceto uma única vez, não me lembro de tê-la visto por lá.
É que enquanto você trabalha querido, eu ainda durmo.
Claro, mulheres bonitas, que sabem tirar proveito da situação, geralmente acordam tarde. Não é mesmo, mamãe?
A minha pergunta causara certo desconforto em Dona Áurea, desfazendo por completo sua impetuosidade para comigo.
Você me respeite moleque. Não me faça dizer certas coisas.
Dentre as quais, por exemplo?
A verdade, que certamente faria desmoronar o seu ídolo de barro.
Que maneira mais ridícula de se referir a um homem que outra coisa não fez na vida senão se dedicar a você.
Um frouxo.
Meu pai. E lave a sua maldita boca pra mencioná-lo.
Um frouxo.
Como?
Isso mesmo. Um frouxo. Incapaz de um gesto carinhoso. Um homem indiferente às coisas importantes da vida.
Por exemplo?
Fazer uma mulher feliz.
Ele tentou mãe.
Mentira! Era um dissimulado na frente das pessoas. De estranhos, principalmente. Com atitudes generosas, sorrisos forçados, demonstrando nas aparências uma felicidade que não possuía. Seu pai.
Não admito isso.
Ela sorriu com deboche. Tinha o hábito de fazê-lo quando estava nervosa.
Por que você acha que eu arrumei um amante e abandonei esta casa? Por que ele roncava?
Porque você é uma vagabunda. Não vale nada. Não tem respeito por ninguém. Não valoriza sua condição de mulher. Porque não pôde se conformar com a rotina sexual do matrimônio. Por que nem todos os prazeres do mundo lhe bastariam, mamãe!
Case-se um dia. Trate sua esposa igual seu pai tratou a mim. E terá o mesmo destino que ele.
Então, pra você, trabalhar é errado? Seus luxos e suas frescuras eram arrancados com o suor de um homem digno.
Mas desatento. Indiferente. Vacilão!
As mulheres realmente adoram homens que não prestam.
Talvez, porque, eles, melhor do que os outros entendem as mulheres.
Sim. Eles sabem fazê-las sofrer.
Hei! Isso já passou dos limites!
Jane tentou intervir. Mas eu impedi.
Cale a boca! Não se meta nisso!
Minha mãe levantou-se finalmente do sofá e caminhou para a porta.
Vou lhe dar a resposta, filho.
Ela tinha lágrimas nos olhos e, por um momento, me dei conta de que era minha mãe.
Não. Sofrer não é o melhor. Mas às vezes, é tudo o que se pode ter.
O que não era o seu caso, mãe. Porque meu pai amava você.
Amava? Pode ser. Mas ele nunca soube demonstrar isso.
E você, nunca se preocupou em ajudá-lo.
Porque eu não o amava.
Então, por que se casou com ele?
Pra aprender a sofrer.
Mas isso não é tudo. Não é?
Sim. Pena que leva algum tempo até que a gente descubra.
Minha mãe se foi. Jane tentou acompanhá-la. Mas foi impedida.
Você é um monstro!
Foi o que me disse Jane, antes de se retirar também.








21.
Digladio-me com a coisa. E o que é a coisa? Vontade jamais satisfeita? Incapacidade assumida? Quem sabe?
Devo fechar as portas do ontem como se fecha um livro. Desfazer-me das chaves, partir, sem voltar os olhos para o que ficou.
Quem diria que você, papel de parede, estaria aprisionado na tela de um computador?
O dono da Gazeta de Rio Claro, eu bem me lembro, era o sujeito que eu sempre quis ser. Homem de letras, culto, de boas relações, era alto, moreno, de olhar meigo, porém incisivo; a voz suave, entretanto, firme. Em público, ele demonstrava elegância e autoridade. No aconchego do lar – eu presumo – ares de bonachão.
Aparentava ser um gigante. Dominador e insaciável. Mas, quando em silêncio, no isolamento da sua rotina de trabalho, parecia um menino, ávido por desvendar um enigma; afinal, antes de ser jornalista, era escritor. E poeta.
E naquela manhã, finalmente, eu o convencera a me dispensar um minuto do seu precioso tempo.
Leu atentamente o poema que eu lhe havia entregado, esboçou um sorriso ao término da primeira leitura, mas, alguma coisa, o convenceu a desperdiçar mais um minuto para uma nova leitura. E ele o fez, e o quase sorriso desapareceu por completo de seu semblante, e ele coçou o queixo, compenetrado, segurando o poema, e agora, olhando para mim.
É bom. Mas pode ser melhor.
Vai publicá-lo?
Se houver espaço, sim.
O sorriso que ele conteve, desabrochou em meu rosto.
Apanhei a mochila do chão, e corri ao encontro de Adler que me esperava apreensivo no portão da escola.
E o que foi que aconteceu depois disso?
Jane mexia nos arquivos do extinto jornal, quando me fez esta pergunta.
O poema nunca foi publicado. E eu deixei de escrever.
Coloquei o copo d’água sobre a mesa.  E retirei-me. Ela foi me alcançar já na saída do prédio. Trazia a pasta que eu havia esquecido.
Sua lista de clientes!
Ela disse isso com satisfação.
Mas ao se deparar com meu desânimo, assumiu feições de seriedade, e desviou o olhar de mim.
Por que não desiste, se não se sente bem fazendo isso?
Porque preciso fazer alguma coisa.
Vender anúncios talvez não seja a solução.
E ver o tempo passar e nada acontecer...  Talvez seja?
É uma forma de dialogar com a vida.
Isto não é um diálogo, Jane, é um monólogo. E já se tornou enfadonho e desinteressante.
Pois então me diga o que pretende fazer? Desistir?
Como posso desistir se não sei o que procuro?
Faça como Adler. Expresse os seus sentimentos de algum modo.
As pessoas se enganam a respeito do meu melhor amigo.
Como assim?
Pensam que ele se dedica à literatura como um passatempo, uma terapia. Um hobby.
E não é?
Não. Ele se dedica porque acredita naquilo que faz.
E você, em que acredita?
No tempo que passou. E nas oportunidades que perdi, na certeza de que a esperança há muito me abandonou.
Pois vá buscá-la, então?
E por que, Jane, você não faz o mesmo?
Até faria. Se soubesse onde encontrá-la. Mas não sei. Aliás, nunca soube.
Talvez eu possa ajudá-la.
Eu desejei isso.
Quando?
Algum dia, querido. Do qual procuro me esquecer.













22.

“Cerimônia”. Assim denominamos a festa para comemorar a primeira edição da insuperável Folha de Rio Claro.
O bar do Tobias estava repleto naquela noite. Pessoas bebendo e fumando. O ambiente esfumaçado de cigarro. Um grupo mais animado havia afastado algumas mesas para que pudessem dançar. As mesas de bilhar estavam ocupadas. Os banheiros também. Até mesmo Dona Áurea havia resolvido dar as caras. E durante algumas horas, dançara animadamente ao som dos anos 60, movida a doses generosas de vermute, e outras tantas de saudosismo, enquanto o filho, este que vos escreve, finado leitor, indiferente à performance ridícula de mamãe, fazia caricaturas das pessoas presentes à festa, sem que elas soubessem.
 Durante aquela semana, Nico e Fred se encarregaram de espalhar folhetos por toda a cidade anunciando o evento e cerveja de graça para os primeiro cinqüenta que chegassem. Imaginávamos que sobraria cerveja. Estávamos enganados.
Sobre o balcão do bar, a pilha de exemplares da Folha de Rio Claro fora consumida em questão de minutos. Para ser lida por alguns, para servir de papelote para outros, e, mais tarde, de papel higiênico, quando terminara o estoque do bar do sempre desatento Tobias.
Eu me encarregara de obter os anúncios para o jornal. Conseguira meia dúzia. O suficiente para bancar o custo da primeira edição de mil exemplares.
Se haveriam outras edições? Não sabíamos.
Estava pensando justamente nisso, quando Jane se aproximou oferecendo-me um copo de cerveja.
Sentou-se junto a mim, e buscou carinho em meu ombro. E quando percebeu que a fumaça do cigarro me incomodava tratou de apagá-lo, desculpando-se.
Tomei uma decisão, Jane.
Vai me pedir em casamento, querido?
Não. Mas sugiro que a partir de hoje, você divida aquela casa com minha mãe.
E você?
Arrumo um canto onde eu possa descansar o meu esqueleto.
Não sabia que vender anúncios pra jornal dava um bom dinheiro assim.
Talvez. Mas a Folha de Rio Claro, eu lhe garanto que não.
E porque resolveu fazer isso de repente?
Porque finalmente tudo mudou na minha vida, Jane
Desde que voltei pra essa maldita cidade, você quer dizer?
Não, querida, não se trata de você. Mudou aqui dentro.
E apontei para mim.
Devo então desistir do meu objetivo?
Se não se importa, deve evitar perguntas.
Mas eu mereço uma resposta, não mereço? Por tudo o que representamos um para o outro.
O que já representamos. Você quer dizer?
Fica difícil admitir isso, se quando olho pra você, encontro o mesmo olhar de há seis anos.
Pois não desista do seu objetivo. Mas, se o motivo de você buscá-lo, Jane, depende do fato de estar ao meu lado, você já tem a resposta.
Não me ofenda, não use de meias palavras comigo.
Deixei de escrever faz tempo, Jane. Flertei com as palavras, quando criança, mas não soube conquistá-las. Não sou bom nisso. Em conquistar a alma feminina.
E em que você é bom? Vamos lá, me mostre garotão!
Eu tentei lhe mostrar a seis anos.
Foi?
Sim.
Então me conte, porque já não me lembro de como foi isto.
Tive vontade de beijá-la naquele momento. A mesma vontade, o mesmo ímpeto, insano e incontrolável, com que um dia, eu a tomei nos braços, junto à goiabeira dos fundos de sua casa. E desmanchei seu cabelo, levantei seu vestido, e ela gritou, afugentando os passarinhos.
Mas, em meus braços, seis anos depois, dentro de um bar esfumaçado e cheio de gente, eu não encontrara mais a minha prima Jane, por quem me apaixonei. Apenas uma mulher. Bonita, é verdade. Atraente, claro que sim, mas que, absolutamente, nada mais significava para mim.  
Ela se afastou indo encontrar em outras mesas a simpatia, o sorriso e o afeto que, em mim, buscara em vão.
Gente, bebida, mesas de bilhar, luz néon, fumaça de cigarro, e aroma de perfume barato. Jane se encontrava em seu habitat natural. Logo não se lembraria mais do que eu lhe dissera há pouco.
Adler passou a dividir a mesa comigo, naquela noite. Estava bastante satisfeito com os elogios que havia recebido. Ele escrevera praticamente todas as matérias do jornal. Qualquer outro se sentiria explorado ao extremo, ele não. Gostava daquilo. E já me questionava se, naquela semana, eu sairia a campo, em busca de novos anúncios para a segunda edição da Folha de Rio Claro. Disse-lhe que esperaria o aval de Tobias, afinal, ele era o editor e jornalista responsável.
Continuamos a beber, eu e Adler. Contei-lhe que iria me mudar de casa. E ele quisera saber onde, mas eu não tinha resposta para lhe dar. Simplesmente não sabia mesmo. Talvez passasse a dividir com O Poeta o abrigo de uma sepultura aberta no cemitério, em noites de frio.
Era o mês de Julho e o inverno se aproximava. O do ano anterior havia sido bastante rigoroso. E isso me causava alguma preocupação porque eu não tinha roupas adequadas para o inverno e nem dinheiro para comprá-las. Talvez juntasse migalhas e recorresse a algum brechó na cidade vizinha.
Decidimos deixar o bar e irmos ao cinema. Finalmente passava um filme pelo qual há muito esperávamos. Daria tempo de assistirmos ao filme e ainda assim reencontrarmos com os amigos para o encerramento da “Cerimônia” quando voltássemos.
Mas essa parecia não ser a intenção de Adler. Com seu olhar meigo e sua atitude discreta e generosa, ele quase me implorou para que eu o acompanhasse até sua casa. Mas não fui. Porque, entre as novas emoções, a nova vida, o novo mundo que eu encontraria se passasse pela porta que Adler me abria em seu coração, havia um abismo, e este parecia agigantar-se cada vez mais diante de mim, a ponto de quase tragar-me. E este abismo, atendia pelo nome de Jane.
Adler se foi, solitário, pela noite fria. E eu voltei para o bar, e o encontrei ainda repleto de gente. As pessoas se divertiam com o Sr. Emílio. Nós havíamos trazido sua cadeira de barbeiro e seus apetrechos para o bar naquela noite. Afinal, a sua persistência, havia sido para nós, o grande incentivo que nos levara a não desistir de publicar a insuperável Folha de Rio Claro. Deu para o Sr. Emilio ganhar uns trocados. Mais do que ganhava nos dias em que deixava de pescar, para atender os minguados clientes de sua barbearia.
Fred cortava o cabelo, algo que não fazia durante meses. Tomava no gargalo o bom conhaque Presidente. Já estava bêbado. Ria sem parar, de modo escachado e brincava com as mechas de cabelo que caíam sobre ele à medida que iam sendo cortadas. Seus olhos estavam vermelhos e as mãos trêmulas.
De repente, ele parou de rir, soltou a garrafa no chão, e encolheu-se todo na cadeira, segurando com ambas as mãos os braços da mesma como um chiclete grudado na parede. 
E todos os olhares se voltaram na mesma direção para o qual ele mirava o seu e encontraram um homem de estatura mediana, gordo e careca, de bermuda, barba por fazer, descalço e sem camisa, estacado à porta do bar, com um porrete na mão.
Pai!
Senhoras e senhores, respeitável público, teremos espetáculo.
Alguém disse isso.
Não teremos não.
Respondi convicto do que estava falando.
Seu merda, cale a boca! E não se meta! Isso é assunto de família.
A ameaça não me convenceu.
Suma daqui, verme desprezível! Já estamos fartos de você.
E avancei contra o pai de Fred, empurrando-o para fora do bar.
Tobias pulou o balcão, chamando por mim, pedindo para que eu não fizesse aquilo.
Ele também é meu freguês, tem o mesmo direito que você ou de qualquer outro nesta maldita espelunca.
Mas seu argumento não ficou sem resposta.
De beber, sim, Tobias. Mas, de espancar o filho, não. Nem aqui e nem em lugar algum.
Saquei o revólver que trazia na cintura sob a camiseta. Pois já esperava que algo parecido pudesse acontecer.  Fiz mira contra o pai de Fred. E, à medida que, eu avançava contra o gordo fedorento e estúpido, ele foi recuando, até chegar à calçada. Mas, não satisfeito, fiz que fosse para o meio da rua. E, depois, que se ajoelhasse. Encostei o cano da arma contra sua cabeça, e chamei por Fred. Ele hesitou, mas eu insisti. Lento, bem devagar, Fred finalmente se aproximou. Ordenei que ele tomasse a arma, e, olhando para mim, suando, trêmulo, ele o fez, sem que a arma se afastasse um milímetro sequer da cabeça de seu pai.
Atire!
O dedo indicador de Fred moveu-se lentamente, quase no limite do descanso da arma.
Não posso!
O quê?
Não posso!
Por que não pode?
Não posso!
Você não pode? Mas o que é que está dizendo
Não posso!
Não, você não pode! Você deve!
Ele me olhou, tenso, os olhos cheios de lágrimas.
Vamos, atire Fred!
Eu não posso! Não me faça fazer isso, pelo amor de Deus!
Por quê?
Fred se esforçava. Mas as palavras que estavam em seu coração não chegavam a sua boca.
Diga Fred por que não pode!
E finalmente. Olhando para mim.
Porque amo o meu pai!
Olhei às minhas costas. Vi as pessoas à distância, esperando temerosas pelo desfecho da história. Voltei os olhos para Fred de novo.
O quê? O que foi que você disse Fred?
Ele hesitou um pouco, mas enfim disse, humilhado:
Eu amo meu pai. Não me ordene fazer isso. Por favor!
Por que você ama quem tem odeia?
Mas ele se manteve calado.
Vamos! Responda seu idiota!
Porque ele é meu pai. Só por isso.
Por que ele é seu pai?
Sim.
Então diga isso de novo.
Era uma tortura para Fred. Mas era necessário. Sofrer é necessário para libertar-se do mal que nos apequena e domina ante a realidade da vida. Chegara o momento de Fred conhecer a liberdade.
Ele é meu pai!  - disse, de maneira quase inaudível.
Diga isso olhando nos olhos dele!
Fred, porém, abaixou a cabeça e começou a soluçar.
Tomei-lhe a arma, desengatilhei-a, e a atirei para longe.
O velho boçal, agora derrotado em seu orgulho e valentia, levantou-se do chão ajudado pelo filho. Fred e o pai se abraçaram. Minutos depois, o choro daquele instante, havia se tornado riso, numa das mesas do bar do Tobias, bastante freqüentado naquela noite.
Já despertava o dia, quando o gordo careca e fedorento, voltou para casa, tão bêbado quanto o filho, mas sem o porrete que trouxera consigo.

Entretanto, antes que aquela noite se despedisse de nossas vidas...

A maioria das pessoas já havia deixado o bar. Eu voltara para a minha mesa, na sempre boa e agradável companhia de uma garrafa de Martini e dos cigarros Carlton filtro longo. Percebi que Jane, encostada no balcão do bar, conversava com um sujeito, enquanto olhava para mim.
Depois de algum tempo, ela finalmente conseguiu se livrar do sujeito, não sem antes lhe passar o seu telefone. Foi ao banheiro, mas logo retornou. Pediu uma cerveja no balcão, dois copos, e veio para o meu lado, sorrindo, porque sabia que o seu sorriso, em determinadas circunstâncias, conseguia me desarmar completamente.
Quase sempre são os homens que me dão as cantadas.
Pois eu estava observando isso agora mesmo.
Verdade? Não reparei.
Há modos e modos de se fazer certas coisas, querida.
E dentre elas, desprezar quem a gente ama?
Ela me serviu um copo de cerveja. Agradeci, mas recusei, sob o argumento de que estava bebendo dry Martini, que, ninguém melhor do que Tobias sabia como preparar. Ela debochou da minha colocação, dizendo que Tobias, como dono de bar  era um ótimo jornalista.
Depois, deixou seu olhar se perder na mesa, a qual ficou alisando com seus dedos compridos e delicados, até alcançar minha mão.
Quer um cigarro?
Aceito.
E reparei que ela finalmente havia aprendido a acender um cigarro, algo que não sabia aos 16 anos.
Deu uma tragada, bebericou minha dose de Martini, e tocou em meu ombro, para só depois alcançar a minha nuca, agora, alvo do carinho dos seus dedos.
Nunca fomos tão parecidos.
Por causa do cabelo, você diz?
E por causa dos olhos, da boca, das mãos...
Por que fez isso com seu cabelo, Jane? Era tão lindo!
Porque as coisas mudam. E as pessoas também. Embora algumas outras se recusem a enxergar isso.
Levou as mãos ao rosto, e fez menção de que fosse chorar, mas controlou-se antes que lhe caíssem as primeiras lágrimas. Tragou novamente o cigarro, e voltou os olhos para o teto do bar. Sua mão agora estava novamente sobre a mesa, e eu senti falta de seu carinho.
Pergunte.
Ela olhou para mim, sorrindo, meio que chorando. Passou o cigarro para a mão esquerda, bebericou novamente o meu Martini, e após recolocá-lo sobre a mesa, passou a roer as unhas.
O que existe de fato entre você e Adler?
Como assim?
Você sabe, estão todos comentando.
Todos? E o que eles dizem?
Que vocês são namorados. Mas não admitem isso em público.
E se fossemos, seríamos obrigados a isso?
Não.
Dessa vez, eu beberiquei o Martini, e, depois, acendi um cigarro.
Quer dizer que vocês não são?
Faz diferença pra você?
Toda diferença.
Por quê?
Porque eu te amo.
Filha da puta, pensei, precisou de 6 anos para admitir isso. Mas por uma daquelas razões que os homens estabelecem repentinamente sem que saibam explicar, decidi bancar o durão
O quê?
Isto mesmo. Sei exatamente o que penso e o que desejo, quando me deito na cama pra dormir. Não tenho necessidade de dinheiro...
Repita isso.
Não tenho necessidade de dinheiro!
Olhei desconfiado.
Caramba, eu não tenho mais!
E ela, irritada, levantou-se, mas, segurando-a pelo braço, eu a impedi de se afastar.
Ficamos nos olhando. De repente, diante de meus olhos, Jane voltava ter 16 anos e cabelos compridos.
O que é que você encontra naquele cara?
Ela disse isso, olhando para o chão.
O que já não encontro nas pessoas.
Pois não acredito que seja alguma coisa que eu não possa lhe dar.
Afeto, generosidade, estas coisas você não pode me dar Jane. Não. Aliás, nunca pôde. Porque você não as possui.
Como é que eu posso lhe provar o contrário, se você não me dá uma chance.
Teve toda chance do mundo anos atrás. Desperdiçou. Paciência. O jogo continua. E a fila anda.
Jane não estava disposta a entregar os pontos.
Mas eu duvido que Adler lhe dê prazer. Não da maneira como eu poderia.
Faz algum tempo, Jane, que a goiabeira, do quintal da sua casa foi cortada. Você não usa mais vestidinho branco um palmo acima dos joelhos. Seus cabelos estão diferentes. Bem diferentes. E embora sua voz continue agradável, o seu olhar é triste. E seu aspecto, pra ser sincero, é deprimente.
Lá fora, o céu adquiria tonalidade vermelha, prenuncio da alvorada. Longe, o marulho das ondas, chegava até nós, trazido pelo silêncio daquela noite que se despedia.
Levantei-me da mesa e fui até a porta do bar do Tobias. Impedi que Jane me acompanhasse. Ali fiquei, enquanto fumava um cigarro, pensando se chegaria o dia em que, um garoto montado na bicicleta, estaria numa hora como aquela, distribuindo os exemplares da insuperável Folha de Rio Claro. Mas, ele, certamente, não se chamaria Tales.
Apaguei o cigarro no chão, e, ao olhar para trás, já não encontrei Jane. O bar estava vazio. Na escadaria que dava acesso ao andar de cima do prédio, uma sombra movimentava-se naquela direção. Então, uma porta bateu, no exato momento em que, as primeiras luzes da manhã, alcançaram os meus pés na calçada.






















23.
Feito folhas ao vento, um castelo de cartas, os meus sonhos foram caindo um a um, sucumbidos à realidade de uma vida concebida de maneira medíocre, mais por acaso e engano, que por desejo: a minha vida.
Esta realidade sempre foi clara e precisa para mim.
Por diversas vezes, minha mãe teve vontade de me atirar contra a parede, e se dependesse apenas de sua vontade, eu teria descido pelo vaso sanitário do banheiro perfumado lá de casa, antes de vir ao mundo.
Desde cedo entendi porque nascemos chorando. Se alguém neste mundo me compreendeu e me aceitou, este foi o meu pai. Eu sou um pouco ele. Meu pai viveu a vida que não quis. Eu sequer desejei a minha.
Eu menti para Jane. Eu deixei de escrever aos 13 anos, porque percebi que as palavras estavam, sim, aos meus pés. Mas como eu poderia escrever sobre o amor, se não conheço isso; como eu poderia escrever sobre perdão e renúncia, se essas coisas não estão e jamais estiveram dentro de mim. Eu poderia, feito um mago, manipular as palavras, e convencer as mentes vazias de nosso tempo de que a vida é bela e somos guerreiros da luz; satisfazer os seus anseios e suas emoções fugazes. Para quê?
Adler, entretanto, não pensava feito eu. Embora, as palavras não fossem tão generosas e cordiais para consigo. Mas os seus limites ele ultrapassava com esforço e com o rigor da disciplina. Era destemido. Tinha a força interior que os corajosos de verdade sabem como e onde buscar. E antes de escrever para satisfazer a si, escrevia para satisfazer aos outros, sem remorso, sem se sentir uma Jane, mesmo que isso custasse terríveis açoites ao seu orgulho.
Agora, ele me olhava com ternura. Tinha algo para me dizer, mas preferira fazê-lo escrevendo. Entregou-me as folhas nas quais havia escrito, e, sem dizer nada, afastou-se.
Sentei-me no banco de pedras da praia, o meu refúgio, e fiquei a ler:
O sol desponta, naquela manhã. No bar do Tobias, o cenário de uma festa recém terminada. Garrafas vazias sobre as mesas, cadeiras fora de lugar, tocos de cigarros pelo chão grudento, restos de porções que os gatos e os cães da vizinhança ainda iriam saborear fuçando nas próximas horas os sacos de lixo colocados na calçada.
Trôpego, ele sobe as escadas que dão acesso ao andar de cima do prédio. Caminha até o final do corredor, e para diante da porta pintada de verde. Olha para o chão, o olhar dos condenados diante do patíbulo, abre a porta. Raios de sol entram pela janela do quarto, também uma brisa agradável e refrescante vinda do mar. Jane está na cama, deitada, dormindo, abraçada a Tobias. E ele ronca, e está nu. Ela também está.
Pensa abrir a gaveta do criado-mudo e apanhar o revólver que certamente encontraria ali. Mas lembra-se que já o havia subtraído para assustar o pai de Fred, naquela noite.
Parte, certo de que assim como o sol e o mar, ele poderia admirar Jane, desejá-la, e mesmo amá-la, mas, jamais possuí-la.
E isso o faz sentir-se em paz. Ao menos naquele instante.
Soltei as folhas onde eu lera estas linhas, e elas foram levadas pelo vento.
Olhei na direção de Adler, e ele já se fazia longe, bem longe, cruzando a praia em direção ao quiosque onde costumávamos sentar aos finais de tarde, para tomarmos um hi-fi, conversarmos um pouco sobre nós, experimentando a incômoda angústia de ver nossas vidas perder um pouco mais do seu brilho, assim como o dia perdia o seu, com o pôr do sol. Mas o dia, tinha a lua e as estrelas para confortá-lo na escuridão da noite, e nós, sequer esperança; Adler, de ter os seus livros publicados, e eu, de encontrar um sentido para a vida. A minha vida.





















24.
Pensei em lhe pedir um quarto emprestado por alguns meses. Mas parece que você já se acha bem acompanhado, Tobias.
Sim, Jane dormiu aqui esta noite.
Não dormiu apenas aqui, esta noite, dormiu com você.
E daí?
Nada. O privilégio e o azar são todo seu.
Ele riu.
Ora, à merda, alemão. Não bastasse ser sua prima, também é uma vadia. Portanto, não há razão pra que tenha ciúme.
Pois eu lhe garanto que há sim. E já faz muito tempo.
Vai me dizer que também estourou o cabaço dela?
Como todo bom primo que se preze diante de uma prima bonita.
E gostosa.
Muito gostosa.
O que devo fazer? Pedir-lhe desculpas?
Não a mim.
Ela estava bêbada ontem à noite.
Exatamente por isso, Tobias
Não vai me constranger, garoto. Agora, pegue a vassoura, e vá varrer a porra daquela calçada, se pretende mesmo dormir aqui.
Garoto! Até parece! Vinte e dois anos nas costas e sem rumo na vida.
Perto de Tobias, eu era mesmo um garoto. E considerando que Jane, tinha a mesma idade que eu, não era, portanto difícil compreender, o interesse dele por ela, apesar das celulites, das olheiras e da folha corrida da minha querida, ilustre e desejada prima.
Fui encontrá-la naquela noite à caça de turistas, na avenida central que dava acesso à praia da enseada.
Vestia shortinho, top colado aos seios, e que deixava à mostra sua barriguinha, revelando aos olhares mais atentos um quase imperceptível percing pendurado ao umbigo.
Ela andava de um lado a outro e não parava de mexer nos cabelos, como se isso pudesse estimular o interesse de algum pretendente.
De repente, abriu a bolsa que trazia a tiracolo, apanhou o maço de cigarros e acendeu um na primeira tentativa. Havia aprendido mesmo.
Atravessou então a movimentada avenida, indo em direção ao quiosque da praia que, apesar do frio, continuava aberto.
Comprou uma cerveja em lata e voltou para a avenida. E enquanto bebia em pequenos goles a cerveja, ficava fazendo poses e olhares para os motoristas que passavam a bordo de seus carrões ou pilotando suas possantes motocicletas.
Mas Jane escolheu e esperou bastante, para ganhar sua noite. E isto se deu quando um motoqueiro parado no semáforo, pilotando uma Suzuki preta, 250 cilindradas, lhe deu confiança, o suficiente para colocá-la na garupa da moto e divertir-se com ela até que a manhã da segunda-feira fizesse a monótona Rio Claro voltar à sua insuportável rotina.
Ela despertou já passava das onze. Acordara com o barulho das panelas na cozinha, onde, Dona Áurea preparava o almoço.
Então, como foi?
Perguntei, olhando-a de soslaio.
Nada mal.
O suficiente pra pagar a pensão?
A pensão, o telefone, as contas de água e luz e o cabeleireiro.
Provavelmente, a estas horas, já acharam o corpo de um idiota encalhado na praia.
Não cuspa no prato que comeu querido, porque, um dia, você também já foi idiota a esse ponto.
Pare de me chamar de querido.
Ok, idiota.
Escuta, por que não se levanta e vai tomar um banho?
Pois é, boa ideia. Mas só tem um problema.
O quê?
Eu adoraria convidá-lo a me ensaboar, mas não posso.
Por quê?
Estou namorando.
O cara da moto?
Sim!
E ela sorriu, cheia de entusiasmo.
Se ele não é o cadáver que provavelmente a estas horas já encontraram encalhado na praia, com certeza, vai morrer de desgosto, assim que se olhar no espelho e se lembrar da noite passada.
Isto é despeito ou é ciúme?
Ciúme, jamais.
E Jane atirou o travesseiro contra mim. E pensei pegá-la na cama, colocá-la de bruços e lhe dar umas boas palmadas, fortes, de deixar a marca dos dedos, como nenhum outro eu sabia que ela apreciava. Ao menos eu acreditava nisso. Mas, pra ser sincero, acreditava desconfiando. Jane vivera seis anos longe de mim. E se a distância fora incapaz de apagar o fogo que havia entre nós, modificara completamente nossas vidas, nosso jeito de ser.
Naquele dia, depois de muito tempo, eu dividira a mesa do almoço com minha mãe. Que outra pessoa neste mundo seria capaz de me induzir a este sacrifício que não Jane?



















25.
Passava um pouco da uma da tarde, quando um Chevrolet quatro portas, estacionou em frente ao bar do Tobias.
Desceram quatro sujeitos. E a julgá-los por suas aparências, eram como quatro alienígenas chegando a uma esquecida cidade de cinco mil habitantes, no litoral norte do estado.
Entraram no bar e ocuparam uma mesa de canto. Pediram duas cervejas e uma porção de fritas. Conversaram alguma coisa, olharam muito para os lados. E, na porção, quase não mexeram. Mas as cervejas, eles consumiram em questão de minutos.
Em dado momento, um deles foi ao banheiro. Outro caminhou até o balcão. Indiferente, porém, atento aos acontecimentos, eu varria ali perto, enquanto Tobias, distraído, lavava alguns copos.
O sujeito que estava no balcão pediu outra cerveja, e enquanto era servido, encarou Tobias, que incomodado, tratou de esconder o rosto, voltando a lavar os copos.
Ora, se não é o jornalista pedófilo! Onde está a sua bonequinha, jornalista? Estamos com saudades. Viemos pra fazer um programinha com ela. O que me diz?
Mas Tobias se fez de desentendido e continuou a lavar os copos. Não por muito tempo.
Ô meu camarada, eu lhe fiz uma pergunta.
Não sei do que está falando.
Não sabe?
E o sujeito, irado, quebrou a garrafa de cerveja no balcão.
Serviço pra você.
E olhou para mim.
Obrigado – respondi – Nem era preciso tanta gentileza.
Mas ele pareceu não gostar nenhum pouco da resposta. E penso que Tobias teria se arrependido profundamente de não pagar um seguro da sua espelunca, se o sujeito que voltava do banheiro, não desse sinal para que os demais o acompanhassem. Eles se foram sem pagar a conta. Mas até que esta ficara barata.
Eu não arredaria o pé daquele maldito bar, enquanto Tobias não me explicasse o que estava acontecendo.
Não é da sua conta, garoto.
Quando se trata de Jane, talvez seja.
Escute...
Escute você, ela é minha prima. Vagabunda, prostituta, sem vergonha, não importa, é minha prima. Feito da mesma lama que eu. E em se tratando da minha família, você não sabe o que isso representa.
Está bem.
Depois de tanta insistência e da derradeira ameaça, ele deu-se por vencido, sentou-se à mesa, e convidou-me a fazer o mesmo. Dividimos um maço de cigarros e uma garrafa de vinho enquanto conversamos.
Eu era um jornalista, em São Paulo, trabalhava num jornal de médio porte com boa penetração nas classes mais baixas. E certa feita, eu fora pautado para uma matéria sobre prostituição infantil. Isso foi há... Oito anos, mais ou menos. Chegamos, eu e o fotógrafo a um bairro da zona leste, estava anoitecendo. Paramos num bar pra tomar um trago e observar o ambiente e a rotina do local.
De repente, um homem levantou-se da mesa e, desesperado, dirigiu-se até nós. Perguntou se éramos jornalistas, e, embora receosos, dissemos-lhe que sim. Ele fez sinal para que o acompanhássemos até a calçada. Ao lado da porta do bar, encostada à parede, havia uma garota. Uma menina, a bem da verdade, magra, descuidada, mal vestida, porém bonita, e já revelando certa malícia no jeito de olhar.
O homem chamou a menina para junto de si, e ela, ainda que hesitante, o obedeceu, na segunda vez em que foi chamada, esta, de maneira ríspida.
Estou desempregado já faz algum tempo, disse ele. Minha filha não come a duas semanas. Mas é bonita, agradável e carinhosa.
Não sei por que razão, eu achei que aquilo poderia me dar subsídios para produzir a matéria. O fotógrafo repudiou a ideia. Mas não se esqueceu de me fotografar, depois, abraçado à menina, num beco, ali perto.
A menina era Jane. E eu sou o jornalista pedófilo.
Então por isso a família dela mudou-se para cá naquela época? – perguntei.
Não apenas por isso. Havia outra razão muito forte.
Enchi o copo de vinho, e fiquei esperando que Tobias continuasse.
O pai de Jane, não suportava a ideia de ter entregado a filha para o amante de sua esposa.
O gole de cerveja ficou parado em minha boca até que eu me convencesse do que acabara de escutar.
E de onde você conhece o sujeito que quebrou a garrafa no balcão?
Ele era o fotógrafo que me acompanhava naquela noite. Quis tirar proveito da situação, algum tempo depois, com as fotos que fez de mim e Jane, sem eu saber. Fez chantagem comigo, durante algum tempo, mas também acabou se ferrando. Foi demitido como eu. Caiu em desgraça no meio jornalístico, teve que mudar de profissão. Virou bandido. E eu, dono de bar.
Mas e aquela história da vagabunda da sua esposa?
Eu jamais fui casado, garoto. Esta foi uma história que inventei pra justificar minha presença nesta cidade.
Retirei-me da mesa, e enquanto Tobias voltava a lavar copos, atrás do balcão, eu fui até a rua, respirar um pouco, impressionado como tudo acontecia na vida das pessoas e nada, absolutamente nada de interessante acontecia na minha.
Pensava nisso, o olhar perdido numa direção qualquer, quando o Chevrolet passou por aquela rua, lento, quase parando.
Dentro do carro, além daqueles sujeitos, Adler, no banco de trás. Ele olhou na direção do bar, e, ao me avistar parado à porta, abaixou a cabeça.
O carro acelerou tomando rumo incerto. O céu estava nublado. Começava a chover.














26.
Só uma pessoa poderia me dizer o que Adler fazia dentro daquele Chevrolet.
Jane estava apreensiva, enquanto enxugava as louças na cozinha, antes de guardá-las no armário. Não respondeu à minha pergunta. Mas eu insisti.
Bem, eles me seguiram. Ao menos, eu penso que sim.
O que você fora fazer na casa de Adler?
Tirar satisfações. Lutar pelo o que é meu.
E quem disse que lhe pertenço?
Seus olhos. Toda vez que voltados para mim. Como agora, por exemplo.
Por que o levaram?
Ele se recusou a revelar o seu paradeiro.
Meu? Por quê? O que querem de mim?
Dinheiro.
Mas eu sequer os conheço.
Mas eu sim.
Está fugindo deles?
Não exatamente.
Quanto deve a eles?
Alguns milhares.
E achou que poderia consegui-los comigo?
Sim.
Por isso voltou para Rio Claro?
Não. Não exatamente. Na verdade, não foi por você. Em princípio, não. Foi por Tobias.
Pra chantageá-lo?
Pra chantageá-lo?
Sim.
Pelo maldito dinheiro! Sempre o maldito dinheiro, não?
Tobias fodeu minha vida!
Tobias não. O seu pai fodeu sua vida.
Minha mãe traía o meu pai.
Novidade nesta família, não?
Meu pai morreu de desgosto.
Estamos em igualdade neste quesito, querida. Vamos aos critérios de desempates.
Você não tem sentimentos?
Fica difícil tê-los neste mundo, e convivendo com quem convivo desde que me conheço por gente.
Por isso nada de bom acontece na sua vida. Sua vida é a mesma de seis anos atrás, a mesma de sempre. Você é o mesmo. Medíocre. Como sempre.
Minha mediocridade serviu para alimentar as suas ilusões até hoje, não é Jane?
Você é detestável. Uma barra de gelo ao menos transpira.
Ela se afastou.
Jane?
Indiferente, ela continuou enxugando a louça.
Conseguiu o dinheiro? Com Tobias?
Não.
E o que pretende fazer?
Nada.
Então, parou de enxugar. Voltou-se para mim.
Deveria ir atrás dos seus amigos.
Não precisa. Eles voltam.
Mas sem Adler.
Eu sei – eu disse, resignado.
Olhamo-nos, finalmente. Tive vontade de esmurrá-la. Mas preferi me conter.
Não se entristeça querido. Você tem a mim.
E voltou a enxugar a louça. Ao mesmo tempo em que tentava enxugar os olhos com os punhos.

















27.
Na manhã seguinte, o Sr. Emilio encontrou um corpo amarrado a uma das bases do píer onde costumava pescar.
O corpo tinha os olhos perfurados, um ferimento de arma de fogo na têmpora esquerda. Estava nu. O pênis havia sido decepado, e o ânus atravessado por um pedaço de cabo de vassoura.
Eu identifiquei o corpo junto às autoridades. Porque os pais adotivos de Adler se recusaram a fazê-lo.
Discreta fora a cerimônia. Não havia muita gente. O jazigo da família de Adler era bastante simples. Eram pessoas ilustres e respeitadas na cidade, mais pela distância que mantinham das demais do que pelas possíveis virtudes. Católicos praticantes iam às missas celebradas pelo padre Firmino, e abriam as portas de suas casas para que ali fossem celebradas novenas e orações. Mas haviam se esquecido de consertar a portinha do jazigo da família, que continuava aberta havia anos. Por isso, para que pudessem sepultar o filho, tiveram que pedir licença ao Poeta, que, naquele instante, ali dormia o sono dos justos e dos desafortunados.
Saía o pai, para entrar o filho. E este, era um segredo que eu levaria comigo, por toda a vida.







28.
Jane nada usava por baixo. E eu só tive o trabalho de levantar o seu babydol e acomodá-la junto a mim ao mesmo tempo em que a encostava contra a parede fria.
Ao menos naquele instante, não era amor o que eu sentia por ela. Era desejo de vingança. Como se Adler dominasse o meu pensamento, envolvesse o meu corpo, conduzisse o meu instinto. Ele queria insultá-la com a sua inocência, o seu amor puro, incondicional. Usava-me para isso. Estava cego pela revolta. Sentia-se uma flor despedaçada; um coração aberto e sangrando. Se algum dia ele chorou não fora diante de mim. Não. Porque diante de mim e para mim, ele só tinha sorriso, um olhar meigo, uma atitude generosa. Carinho, cumplicidade e atenção. Ele tinha e me dera tudo o que eu, em vão, buscara nas pessoas, e depois, em Jane. E bem cedo, menino ainda, eu desistira de buscar. Jane fora minha última esperança, a última fronteira que me separava da indiferença para com o meu semelhante. Adler, fora um arco-íris, riscando o céu de minha vida, depois da chuva.
Agora, sobre a cama, submissa aos meus anseios meramente humanos, Jane estava quase desfalecida, e, mesmo assim, eu continuava a penetrá-la; forte, intenso, ininterrupto. Coloquei-a de bruços, fazendo com que se apoiasse com as mãos na cabeceira da cama, mas ela não resistiu por muito tempo. Levantei-a pelos cabelos ou o que restara deles e não me cansava de chamá-la de vagabunda. Minhas mãos escorregavam pelas suas costas suadas, alcançavam-lhe as nádegas. Ela me pedia para que batesse forte; sua voz débil, quase incompreensível.
Veio a noite, o quarto escureceu, dona Áurea chamara à porta, não fora atendida.
Eu e Jane continuamos. E jamais terminaríamos, não fossemos prisioneiros do tempo.
Adler se foi, abandonou o meu corpo, quando eu estava no chuveiro. Em espírito, ele abandonou-me à eternidade. Partira saciado. Levara o meu amor.
Quando voltei ao quarto, com uma toalha envolvida na cintura, os cabelos penteados para trás, Jane era, aos meus olhos, apenas a minha prima, a vagabunda da minha prima, dormindo, nua, sobre a cama.
Fui almoçar. Dona Áurea havia fritado bifes. Pelo menos isso, sabia fazer muito bem.


















29.
Ainda não havia amanhecido quando eu acordei. A janela estava aberta e a brisa do mar misturava-se à penumbra do quarto.
Enquanto observava as sombras do velho guarda-roupa, da velha cômoda e da velha cortina, no quarto onde tudo era velho até mesmo o amanhã, eu prestava atenção no marulho interminável das ondas que iam e vinham. Iam e vinham feito os pensamentos à minha mente, feito o meu espírito ao meu corpo. Ia e vinha. E às vezes, o espírito não queria voltar. Mas aquele ainda não era o seu tempo. Sua carta de alforria demoraria a chegar.
Resolvi caminhar.
Na sala, deitada no sofá, minha mãe roncava. E no quarto, Jane continuou dormindo feito um anjo, não mais do que Rio Claro, esta, envolvida pelo sono eterno de sua mediocridade.
Havia chovido um pouco durante a noite. Ao caminhar pelas ruas, deparei-me com o habitual e deprimente cenário. Casas velhas e abandonadas. Viciados errando pelos becos. Comércios, cujas portas jamais voltariam a se abrir.
Cheguei à praia, sentei-me no banco de pedras, como de costume, e ali fiquei, tentando esvaziar a mente, desfazer-me da angústia que me causava pensar como seria a minha vida dali por diante, sem o sorriso e a presença de Adler, a iluminar os meus dias.
Eu podia vê-lo, se quisesse, caminhando pela praia, como da última vez, como se, na distância, se despedisse de mim. E naquela oportunidade o fizera em silêncio. Com palavras. Apenas algumas linhas. Desejando mostrar-me como seria a minha vida dali por diante, se me sujeitasse aos irresistíveis encantos de Jane. Qual o preço eu teria de pagar, por alguns, nada mais que isso, momentos de prazer. Momentos.
Em espírito eu amava Adler. Em carne e osso, não podia viver sem Jane. Mas aonde ia o segundo, o primeiro ia atrás.  E esta simbiose era demoníaca, destrutiva. Eu seria destruído, já estava sendo. Fosse antes, eu pouco me importaria. Mas agora, não. Eu havia mudado.
Era outono, época em que as noites são mais longas e os dias mais curtos. Muito bom, para o que eu pretendia fazer.
Fui a casa de Fred. Bati na janela do seu quarto que dava para a rua.
Quem é?
O capeta.
Há essas horas, só poderia ser mesmo.
Levante daí, seu idiota, rápido, temos muito que fazer, e não podemos perder tempo.
Instantes depois, ele me atendeu no portão de sua casa. Bocejou e espreguiçou algumas vezes, antes de conseguir manter os olhos abertos.
Posso saber do que se trata?
Pode sim. No momento adequado.
O quê?
Vamos ao cemitério.
Você exagerou no conhaque de novo, não foi?
Escute, vamos salvar Adler. Precisamos tirá-lo daquele buraco.
Cara, você ficou louco!
Por que não? Já fizemos isso uma vez.
Era o maldito Juiz.
E o mandamos de volta para o Inferno, devidamente pré-aquecido.
Pois não acho que seja isso que você pretende fazer ao seu queridinho.
Como?
Desculpe. Nosso amigo, Adler.
Sim, isso mesmo. Agora vamos.
Fred coçou a cabeça, e clamou por Deus, duas ou três vezes. Na quarta, eu o puxei pelo braço. Fechamos o portão atrás de nós e seguimos ao cemitério.
Você tem dinheiro?
Pra subornar o guarda de novo?
Sim.
Não. Mas você tem Fred.
Como sabe que eu tenho?
Não saberia se não o conhecesse há mais de vinte anos. Que outra pessoa em Rio Claro, dorme todos os dias com o dinheiro dentro da cueca? Com medo que o pai lhe roube.
Mas o que eu tenho no momento, talvez não seja o bastante.
E por isso mesmo, eu trouxe uma garrafa de vinho para o nosso amigo guarda.
Da pior qualidade, certamente.
Claro. Daí ele fica bêbado logo, e acaba esquecendo tudo o que viu. E inclusive de nós.
Fora mais difícil convencer o guarda do cemitério a nos deixar entrar do que retirar Adler da sepultura.
A portinhola do jazigo continuava aberta. E a parede que fechava a gaveta onde fora colocado o caixão, ainda estava úmida. Mas, para nossa sorte, e talvez por contenção de despesas por parte da falida prefeitura de Rio Claro, os coveiros não usavam cimento no preparo do reboco para assentar os tijolos, apenas água, areia e terra e um pouco de cal. De modo que fizemos o serviço sem maiores dificuldades.
Saímos do cemitério, meia hora depois. Eu, com Adler nas costas. E Fred, na escolta, fumando um cigarro e empunhando a garrafa de vinho que roubara do já embriagado guarda.
As ruas estavam desertas. Chegamos à praia, e, também ali, não avistamos ninguém.
Seguimos até o banco de pedras, onde nos sentamos. Tomei Adler em meus braços. Fred, ainda com a garrafa na mão, ficou olhando na direção do mar. De repente, ele levantou-se.
O que significa isso?
Significa amor.
Cara, você não era assim. De você, eu podia esperar tudo, menos isso.
Eu sei.
Adler está morto. Logo vai começar a feder. E os vermes sairão pelas narinas, ouvidos, pela boca e até pelo cu desse filho da puta. Pois eu lhe pergunto: Até onde pretende levar isso?
Até onde for possível.
Pois acho que devia atirá-lo ao mar. Amarre uma pedra no pé dele para que afunde e não volte à superfície.
Não agora.
Quando?
Daqui a pouco. Logo. Antes que amanheça.
Fred parecia impaciente.
Por que fez isso? Não devia tê-lo feito!
Eu precisava. Era preciso.
Trouxe a cabeça de Adler para junto de meu peito.
Pois se pretende beijá-lo, faça-o agora, antes que os vermes apareçam, e você perca o interesse.
Você não entende. Não entende mesmo, não é Fred?
Quer ouvir a verdade? Você tem razão. Cada vez eu o entendo menos.
Mas não é a mim que você deveria tentar entender.
Não?
Não! É ao que de melhor pode existir em nós. Qualquer um de nós neste mundo que caga, peida e respira.
Gostaria. Mas nem faço ideia do que você está falando.
Pois é muito simples. Estou falando do amor.
Fred não se conteve. E riu.
Adler era nosso amigo. Bom sujeito. E está morto.  É assim que eu entendo as coisas, porque é assim que as vejo, tentou se explicar. Mas em vão.
Permaneci em silêncio alguns minutos, e, depois, com algum esforço, levantei-me do banco de pedras, mantendo o corpo de Adler em meus braços. Desci cuidadosamente até a areia, e assim caminhei na direção do mar. Um pouco já distante, as palavras vieram à minha boca.
Se amor existe, Fred, Adler me fez conhecê-lo.
E nesse momento, o amor, como o conheci, despertou em meus braços, olhou-me, sorrindo, e me abraçou forte.
Agora, ele caminhava ao meu lado, em direção ao mar. E vi quando as ondas alcançaram nossos pés.
Eu parei ali. Mas ele continuou, singrando o mar em direção ao sol, que despontava na linha do horizonte. Se for verdade que o sol é onde moram aqueles que sabem amar, era para o sol que Adler, em espírito, caminhava.
Dobrei os joelhos, ante a natureza e a realidade que me consumia em desespero. Lágrimas verteram de meus olhos, um nó na garganta, braços e pernas adormecidas, a cabeça pesando muito, como se prestes a explodir. Assim eu fiquei algum tempo, até me levantar.
Cruzei com Fred que vinha em minha direção, e enquanto eu voltava para casa, ele tratou de se livrar daquele cadáver que ficara estendido na areia da praia. E como sugerira sem nenhuma cerimônia ou pudor fizera-o afundar nas águas salgadas do oceano.

















30.
O fato servira ao menos para tirar Rio Claro de sua eterna sonolência. Todos queriam saber o paradeiro dos restos mortais do jovem e talentoso redator do jornal que levava o nome da cidade.
Uma segunda e não esperada edição da Folha de Rio Claro, editada dois dias depois, esgotara-se em questão de minutos, destacando os últimos e inéditos textos escritos por Anthony Adler.
Preocupada com as aparências, a família pedira que se encerrassem as especulações. Sequer chegara a dar queixa sobre o desaparecimento do cadáver do filho adotivo. Dera o caso por encerrado, afirmando que se o corpo perecia ao tempo e as circunstâncias, o espírito era indestrutível, porque eterno. E quando perguntada de que maneira Adler ressuscitaria, dentre os mortos, no dia do Juízo Final, se o corpo não existia mais, os pais adotivos de Adler, católicos praticantes, silenciaram sem dar resposta.











31.
Malas e sacolas estavam no chão, ao pé da porta. Eu já tinha visto aquela cena antes. Mas agora a situação era completamente outra.
Olhei pela janela, e lá estava o Chevrolet estacionado em frente à minha casa. E dentro, os mesmos quatro sujeitos da vez anterior.
Jane não me disse nada. Despediu-se de mim com um olhar demorado. Havia um pouco de tudo naquele olhar. Medo, ansiedade... Um pedido de desculpas.
Ela deu-me as costas, e antes de passar pela porta, disse:
Peguei o seu maço de cigarros.
Não faz mal. Eu junto tampinhas e consigo outro.
Da sala, eu vi quando Jane entrou no carro. Ela tinha uma dívida com aqueles sujeitos. Uma dívida enorme. E teria de pagá-la, de algum modo. Porque são assim que as coisas funcionam.
Algum tempo depois, tomei gosto pelo jornal. E Tobias, também passou a levar a sério o assunto voltando a escrever.
Finalmente, ele aceitou assinar como jornalista responsável. Tomou dinheiro emprestado no banco da cidade vizinha, e demos um formato legal ao projeto A Folha de Rio Claro, do qual, eu era o gerente publicitário e chargista nas horas vagas.
Nas eleições seguintes, apoiamos a candidatura do pai de Fred para prefeito, cujo lema de campanha era: “Expedito Furlani, nossa juventude em boas mãos”.
Todos os dias os habitantes de Rio Claro recebiam um exemplar do jornal, com uma foto 12x22 de nosso ilustre candidato, na primeira página, sorrindo e abraçado ao filho. Os assinantes recebiam uma edição completa de vinte páginas. E os não assinantes, uma reduzida, com apenas dez, sendo que destas, ao menos cinco, eram dedicadas ao incomparável “Expedito Furlani” e seus feitos tão bem concebidos pela mente treinada do agora novamente jornalista Tobias Bastos.
Quando as urnas foram abertas, vitória esmagadora. O ex-carpinteiro, e agora, Doutor Furlani, passou a ocupar a cadeira mais cobiçada do paço municipal, e a nossa insuperável Folha de Rio Claro, a publicar todos os editais, anúncios e matérias de interesse da administração pública.
Assim, pude dar uma casa maior e mais confortável para Dona Áurea, minha querida mãe. A comprar uma para mim também. E já não andava mais a pé os 50 km2 de Rio Claro, mas a bordo de meu Ford conversível, despertando a atenção e o desejo das Janes da vida, que, finalmente, passaram a ter olhos para mim.
Esta bem podia ter sido a história da minha vida, a partir do instante em que Jane, a minha prima Jane, a vagabunda, a gostosa e perdidamente detestável Jane se despedira deste seu primo com um olhar demorado.
Mas não. A vida tinha outros planos para mim. Como cuidar de minha mãe, inválida, numa cama. Dar banho, alimentar e limpar a sujeira de quem sempre eu odiei. Nos seus últimos dias, ela respirara a custa de um balão de oxigênio. O dinheiro de suas economias estava por terminar. E eu, como sempre, sem dinheiro, sem rumo, sem esperança.
O médico fora visitá-la numa sexta-feira, ao final da tarde. Perguntei-lhe se não era o caso de levá-la para o hospital. Mas com poucas palavras, ele me convencera que não. Deixou-me o seu telefone, anotado num pedaço de papel, e se retirou.
Quando liguei para ele, naquela madrugada, minha mãe já não respirava.
Ao chegar, e examiná-la rapidamente, ele só teve o trabalho de me dar a esperada notícia. A melhor de minha vida. E nem esta, eu pude comemorar.
Os vizinhos cuidaram do resto. E eu passei todo aquele dia na praia, sentado, como de costume, no banco de pedras, o olhar em direção ao nada. Tentando esquecer de como tudo na minha vida poderia ter sido diferente.
Resolvi caminhar pela praia, e fui bem longe. Caminhei léguas. Às vezes, sob o sol escaldante, outras, sob a chuva. Mas sempre com as ondas a cobrir os meus pés descalços.
Retornei para a casa, apenas na manhã do dia seguinte. Pra pegar minhas roupas, a mochila e partir, do mesmo modo como me dei por gente neste mundo: sem rumo, sem esperança.
Olhei-me, por instantes, no espelho do banheiro. Talvez fosse a última vez que meu espírito se deparasse com a sua imagem humana.
Passei pela sala, e antes que abrisse a porta, alguém o fez.
Minha primeira reação foi não tomar conhecimento, evitá-la, e seguir adiante. Mas não pude. Porque cometi o erro fatal. Olhei para ela. Olhei nos olhos dela. E de novo encontrei a minha prima Jane, com 16 anos, usando vestidinho branco, um palmo acima dos joelhos, e de cabelos compridos. Porque era este o meu modo de vê-la.
É aqui que os elefantes se escondem pra morrer?
Continua sendo – respondi.
Deixei a mochila cair ao chão, atrás de mim.
Eu e Jane nos abraçamos forte. Beijamo-nos com amor. E nos desejamos intensamente a ponto de quase perdermos a respiração.
Quis levá-la logo para o quarto. Mas ela impediu, segurando-me pela mão. E olhando, para trás, deu sinal para os quatro sujeitos, seus amigos, que continuavam dentro do Chevrolet. Pensei que eles dariam a partida no carro. Mas antes de fazê-lo, abriram a porta, e do banco de trás, saiu um garotinho, loiro, e caminhando saltitante pela calçada em nossa direção. Meu filho.
Ite, Missa est